Nelson Jr./SCO/STF
Magistrada atende a uma reclamação apresentada pelo advogado Fernando Fernandes após gravação de Idibal Pivetta não ser encontrada
A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia determinou que o Superior Tribunal Militar (STM) cumpra decisão anterior do Supremo e divulgue, na íntegra, todos os áudios de sessões realizadas durante o regime militar (1964-1985).
A magistrada atende a uma reclamação apresentada pelo advogado Fernando Fernandes, que há décadas se dedica a esmiuçar áudios de julgamentos do STM e trava uma batalha judicial em torno deles.
Criador do portal Voz Humana, Fernandes diz ter descoberto recentemente que a gravação de uma sustentação feita pelo advogado e dramaturgo Idibal Matto Pivettajunto à corte castrense está desaparecida. O STM nega praticar omissão ou censura.
O advogado chama a decisão de “uma enorme vitória”.
A abertura dos arquivos sonoros contendo julgamentos de presos políticos e militares da ditadura foi determinada pelo plenário do STF em 2017. No início de 2023, porém, o grupo de pesquisadores liderado por Fernandes identificou supostas gravações faltantes durante o trabalho de fichamento e transcrição dos processos —e acionou o Supremo.
A ação é relatada por Cármen Lúcia. Em sua determinação, a magistrada afirma que o STM descumpriu decisão do Supremo.
A pedido da relatora, o presidente do presidente do STM, o ministro Francisco Joseli Parente Camelo, se manifestou no processo e afirmou que a tecnologia da época e suas limitações fizeram com que alguns trechos tivessem baixa qualidade, com partes inaudíveis.
“Uma ínfima quantidade de processos, públicos ou sigilosos, entre eles os acima relacionados pelo reclamante, não tem registro da captação de áudio das sessões ou o arquivo está com a integridade corrompida, em razão do lapso temporal e da tecnologia à época disponível, o que é lamentável até mesmo para os integrantes desta Corte”, disse o presidente do STM.
E seguiu: “Logo, não se descarta a possibilidade de o requerente, futuramente, detectar outros arquivos com a integridade comprometida, lastimosamente. Em casos desse jaez, será necessário se socorrer da documentação física registrada nos impressos arquivados na DIDOC [Diretoria de Documentação e Gestão do Conhecimento”.
Cármen Lúcia argumenta, no entanto, que o acesso aos arquivos determinado pelo STF “foi amplo, irrestrito e integral”. “Naqueles julgamentos não houve limitação sobre a qualidade das gravações; se houve ou não captação integral do áudio das sessões; se o arquivo estaria ou não com sua integridade corrompida”, pontua a ministra.
A magistrada determina que o STM coloque à disposição todo o material requerido, independente do estado em que se possa estar. E que cabe à equipe de Fernando Fernandes decidir se utilizará ou não os arquivos, ou até mesmo providenciar sua restauração.
O STM, portanto, deverá liberar o acesso de um especialista técnico, se a equipe do projeto Voz Humana quiser, para averiguar “a integridade das fitas originais e a possibilidade de sua restauração, às custas do reclamante”. Cármen ainda obriga a corte militar a esclarecer a suspeita sobre eventual ocultação de parte dos documentos pleiteados.
A ausência da gravação do julgamento de Pivetta teria sido notada após uma entrevista concedida pelo ex-ministro José Carlos Dias ao projeto Voz Humana.
Defensor de perseguidos do regime, Pivetta foi levado por militares e torturado, permanecendo preso por 67 dias. Segundo registros, agentes da repressão teriam plantado documentos ditos subversivos em seu carro e em seu escritório para simular que ele era também integrante de uma organização clandestina.
As provas não foram reconhecidas, e Pivetta acabou sendo absolvido em primeira instância. O regimento da época, contudo, determinava que o Ministério Público Militar era obrigado a recorrer, e o caso foi levado ao STM. Na corte superior, o advogado fez sua própria defesa em 16 de setembro de 1975.
Segundo Fernando Fernandes, contudo, apenas a gravação do início da sessão foi disponibilizada pelo tribunal castrense, não sendo possível localizar a sustentação oral feita por Pivetta.
“Nos passaram a informação de que parte do material estava corrompido. Mas lembremos que são fitas magnéticas, não estamos falando de arquivo digital. Nós queremos saber onde está a fita”, diz o advogado.
Em 2022, uma parte dos áudios foi revelada pelo professor de história do Brasil Carlos Fico, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com quem o conteúdo também foi compartilhado. Ao todo, pesquisadores já tiveram acesso a cerca de 10 mil horas de registros judiciais em áudio.
Neste ano, o projeto Voz Humana, liderado por Fernandes, foi homenageado e um dos finalistas da 20ª edição do Prêmio Innovare, que prestigia boas práticas da área jurídica.
Folha de SP