foto: Jim Watson/AFP
Vídeo da primeira-dama recebendo o presente durante uma audiência privada exigiu monções de repúdio no Parlamento e aumentou desconfiança sobre papel da mulher do presidente no governo
Rapidamente, o caso se transformou em uma das maiores crises políticas para Yoon Suk-yeol. O presidente, que deixou uma marca na política externa ao aprofundar relações com os Estados Unidos e o Japão, está atolado em controvérsias internas — muitas delas envolvendo a primeira-dama, Kim Keon-hee.
O vídeo da primeira-dama, que surgiu no final do ano passado, causou um desentendimento entre Yoon e um de seus aliados mais próximos, o que abalou seu partido político — um membro sênior pediu a Kim que se desculpasse e a comparou a Maria Antonieta. E, como mostram as sondagens, o tema se tornou uma questão significativa antes das eleições parlamentares, em uma atmosfera política cada vez mais polarizada.
Durante quase dois anos, Kim desafiou a forma como a sociedade profundamente patriarcal sul-coreana vê o papel da cônjuge presidencial. Ao contrário das primeiras-damas anteriores, que normalmente permaneciam na sombra do marido, ela aproveitou a atenção da mídia e até pressionou publicamente o governo de Yoon a proibir a criação e o abate de cães para consumo humano. Ela falou sobre a devoção do marido por ela, dizendo em 2022 que ele havia prometido cozinhar para ela e “cumpriu essa promessa durante a última década”.
Mas Kim também tem frequentemente gerado polêmica, às vezes de maneiras que, dizem os críticos, destacam sua influência indevida sobre o governo.
Em 2021, quando Yoon, um ex-promotor de justiça, fazia campanha para a Presidência, ela pediu desculpas por inflar seu currículo para promover seu negócio de exposições de arte. Depois, houve a divulgação de conversas com um repórter, que a gravou secretamente, em que sugeriu estar profundamente envolvida na campanha de seu marido. Ela chamou Yoon de “um tolo” que “não pode fazer nada sem mim”. Ela também declarou que retaliaria contra a mídia hostil “se eu tomar o poder”.
Kim também enfrentou acusações de que estava envolvida em um esquema de manipulação de preços de ações antes da eleição de Yoon. Em dezembro, o Parlamento controlado pela oposição aprovou um projeto de lei que teria indicado um procurador especial para investigar as alegações. Yoon, de 63 anos, que assim como Kim, de 51, negou as acusações e vetou o projeto.
O vídeo polêmico foi feito em setembro de 2022, por um pastor coreano-americano chamado Choi Jae-young, com uma câmera escondida dentro de um relógio de pulso. A primeira notícia sobre o episódio veio mais de um ano depois, de um canal de YouTube chamado Voice of Seoul, o mesmo meio de comunicação que divulgou o bate-papo de Kim com o repórter. A filmagem mostra Choi visitando Kim em seu escritório pessoal, fora do complexo presidencial, e entregando-lhe o presente.
— Por que você continua trazendo isso? — a primeira-dama diz no vídeo. — Por favor, você não precisa fazer isso.
Choi defende relações amistosas entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, enquanto Yoon assumiu uma postura mais agressiva em relação ao Norte. Ele disse que conheceu a primeira-dama quando Yoon estava concorrendo à presidência e recebeu um convite para a posse, em maio de 2022. Ele visitou o escritório de Kim um mês depois para agradecê-la e disse que lhe deu um conjunto de presente de cosméticos da Chanel no valor de U$ 1,3 mil (R$ 6,4 mil).
Durante essa reunião, Choi disse que ouviu uma conversa na qual Kim parecia estar desempenhando um papel na nomeação de um alto funcionário do governo. Ele disse que foi então que decidiu “expô-la”. Um repórter da Voice of Seoul forneceu-lhe a câmera espiã e a bolsa Dior, feita com couro de bezerro e cor azul-nuvem, e Choi enviou uma foto da bolsa Dior para Kim.
Choi disse que, embora tenha pedido várias vezes para se encontrar com a primeira-dama, isso só aconteceu duas vezes, e apenas quando a informou com antecedência que estava trazendo presentes caros. Os funcionários do governo e os seus cônjuges estão proibidos de aceitar presentes de valor superior a 750 dólares (R$ 3,7 mil), mesmo que não esteja envolvido nenhum potencial conflito de interesses.
— O presente foi um ingresso para uma audiência com ela — disse Choi.
No vídeo, a primeira-dama também expressou o seu desejo de se “envolver ativamente nas relações” entre Coreia do Norte e Coreia do Sul, levantando receios de que ela estivesse ultrapassando o seu papel.
Enquanto o escândalo se alastrava, Kim evitou aparições públicas durante um mês e meio. O Gabinete de Yoon, quando questionado se o presidente e a primeira-dama tinham algum comentário sobre o assunto, disse que “não tinha nada a compartilhar”.
Kim não comentou publicamente as várias acusações contra ela sobre seu envolvimento nas atividades políticas. Em 2021, ela disse que “manteria o papel de esposa” se Yoon fosse eleito. Mas durante uma rara entrevista à Artnet News, no ano passado, ela sinalizou uma mudança, dizendo que queria se tornar “uma vendedora de K-culture” e apoiar Yoon e seu governo na “diplomacia cultural”.
Nas conversas gravadas por Choi e pela Voice of Seoul, ela pareceu negar as alegações de irregularidades, caracterizando-as como campanhas de difamação política.
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Alguns funcionários do Partido do Poder Popular de Yoon acusaram Choi de preparar uma “armadilha” para a primeira-dama e cronometrar a divulgação do vídeo para influenciar as eleições de abril. Eles também disseram que Kim não usou a bolsa, que estava guardada em um repositório presidencial.
A maioria dos sul-coreanos, em pesquisas, afirma que foi inapropriado que Kim aceitasse a bolsa e afirma que quer uma investigação e uma explicação de Yoon.
— Esta é uma questão explosiva — disse Ahn Byong-jin, cientista político da Universidade Kyung Hee, em Seul, afirmando que ela lembra aos sul-coreanos a corrupção recorrente que desonrou a maioria dos ex-presidentes do país.
Alguns membros do partido de Yoon exigiram um pedido de desculpas de Kim para controlar os danos. A oposição acusou-a de tráfico de influência e “manipulação de assuntos governamentais”. Yoon, acrescentaram, estava sendo excessivamente protetor da sua esposa, em total contraste com a perseguição agressiva do seu governo às acusações de corrupção contra Lee Jae-myung, o líder da oposição. Yoon também foi criticado por seus aliados na mídia.
— Os conservadores deste país já não podem correr o ‘risco Kim Keon-hee’ — disse um colunista do diário conservador Dong-A Ilbo.
Com o aumento da pressão, o presidente do partido, Kim Gi-hyeon, renunciou. Yoon o substituiu por um aliado próximo, Han Dong-hoon. Mas Han pareceu criticar a forma como o governo lidou com o escândalo e nomeou o alto funcionário que comparou Kim a Maria Antonieta, uma crítica que repercutiu amplamente entre o público.
Yoon então exigiu a renúncia de Han, de acordo com a mídia local, mas na semana passada os dois homens pareciam ter firmado uma trégua desconfortável.
A maneira como lidaram com o escândalo mostrou quanta influência Kim exerce dentro do gabinete de Yoon, disseram analistas políticos. É por isso que os sul-coreanos brincam, disse Ahn, que “há dois VIPs no escritório de Yoon e a VIP número 1 é Kim Keon-hee.”
O Globo