Três meses atrás, no dia 20 de setembro do ano passado, um bonito veleiro, de 17 metros de comprimento, com a bandeira da Rússia, chegou ao Iate Clube de Natal, no Rio Grande do Norte.
Dele, desembarcaram dois homens: um russo, que se apresentou como capitão da embarcação, e um tripulante da Lituânia, que pagaram adiantado pela permanência do barco no clube, por dois meses.
Mas, em seguida, logo após a chegada também à Natal de uma jovem da Letônia, incumbida de cuidar do barco durante a permanência dele no iate clube da cidade, os dois homens pegaram um avião e foram embora do país.
E nunca mais voltaram. Bem como ninguém para levar o barco embora.
Só quem chegou foi a Polícia Federal, atraída por uma denúncia de aquele veleiro havia sido roubado no litoral da Croácia, em julho do ano passado.
Começava aí uma estranha história, que ainda não foi totalmente desvendada pela Polícia brasileira.
O que a Polícia já descobriu
Por que aquele grande barco, avaliado em cerca de 600 mil euros (mais de R$ 3 milhões), fora abandonado no iate clube potiguar pelos supostos ladrões (talvez membros de uma quadrilha internacional), e por que ele fora trazido para o Brasil, a quase 10 mil quilômetros do local onde fora furtado, são algumas das perguntas para as quais a Polícia Federal ainda não tem todas as respostas.
Mas os policiais já descobriram muitas outras coisas deste esquisito caso.
Como o fato de o barco ter chegado aqui com outro nome e documentos falsos, bem diferentes daqueles com os quais partiu do porto de Kastela, na Croácia, para um suposto cruzeiro de uma semana pela região, já que se tratava de um barco de aluguel.
Alugado na Croácia
Quem o alugou, no dia 8 de julho do ano passado, foi um comandante da Letônia (mesmo país da mulher que, não por acaso, mais tarde, chegaria ao Brasil para cuidar do barco), acompanhado de um russo, este utilizando um passaporte português.
De Kastela, os dois seguiram para a turística ilha de Korcula, no litoral da Croácia, onde o veleiro, ironicamente batizado de Mischief (“Travessura”, em português), ficou parado por uma semana.
Até que, após a chegada à Korcula de uma brasileira, acompanhada de um casal também da Letônia (a incidência de cidadãos de países da antiga União Soviética, como Lituânia, Letônia e a própria Rússia não é mera coincidência nesse caso, embora esta brasileira e tal o russo com passaporte português também gere suspeitas), o veleiro foi levado embora, para destino ignorado.
Ao mesmo tempo em que isso aconteceu, o tal capitão letão que havia alugado o veleiro em seu nome (mas, segundo ele, como simples comandante contratado para aquele cruzeiro de uma semana com “clientes” — e que, por isso mesmo, teria se mudado temporariamente para um hotel na ilha de Korcula, a fim de deixar “os casais à vontade a bordo”), dava queixa de “roubo do barco” — talvez, como mero subterfúgio para se eximir do envolvimento direto no furto do veleiro.
Um mês escondido
O que aconteceu em seguida, a polícia ainda não sabe em detalhes. Mas é certo que o barco passou cerca de um mês escondido em algum canto do mar Mediterrâneo, Egeu ou Adriático, sendo adulterado, antes de reaparecer, com outro nome (agora, rebatizado “Albina”), outro documento (falso até no modelo original do barco), e outra nacionalidade (a russa), em uma marina da cidade de Smir, no Marrocos.
De lá, após uma curta estada, o veleiro seguiu rumo ao Brasil, no dia 9 de agosto, mas já com outra tripulação: o tal capitão russo, acompanhado por um tripulante da Lituânia, os mesmo que chegariam ao Iate Clube de Natal 40 dias depois, embora o destino oficial do barco, registrado pela tripulação ao deixar a marina marroquina, fosse a cidade do Rio de Janeiro.
Por que o veleiro mudou de rumo e foi parar no Rio Grande do Norte é outra das perguntas para as quais a Polícia ainda não tem uma resposta. Mas é certo que o barco chegou ao iate clube potiguar sem nenhum tipo de carga, e que seria para o Rio de Janeiro que ele navegaria em seguida, como o tal capitão russo deixou claro ao registrar a chegada do barco no clube, e também na Capitania dos Portos — que tampouco percebeu que o documento apresentado era falso até no modelo original do barco.
Barco chegou com outro nome
O veleiro em questão é um modelo 588 da marca Hansen, mas que constava como sendo “modelo 575” no documento apresentado — possivelmente, após ter sido clonado de outro barco, o “Albina” original, utilizado pelos ladrões para alterar a identidade da embarcação furtada.
Isso também ficou claro na grosseira alteração feita tanto na numeração de série do motor (que teve um dos seus números adulterados, mas não o bastante para descaracterizar o modelo original, porque os ladrões alteraram o dígito errado), quanto na aplicação do novo nome no casco, onde há evidentes sinais de ter sido raspado o nome original.
“É o mesmo barco”, diz o delegado
É nisso que a perícia da Polícia Federal potiguar vem trabalhando neste instante, a fim de comprovar o que há muito o delegado que está cuidando do caso, Gilberto Pinheiro, já sabe: de que se trata do mesmo veleiro que fora roubado na Croácia, cinco meses atrás.
“Não restam dúvidas de que é o mesmo veleiro”, diz o delegado. “Mas precisamos provar isso, e também descobrir o interesse dos ladrões em trazê-lo para o Brasil”, diz o delegado.
Teria vindo buscar drogas?
A rigor, a Polícia brasileira trabalha com três hipóteses: o simples furto de um barco valioso, orquestrado por uma suposta quadrilha especializada nesse tipo de crime; a possibilidade de o veleiro ter sido utilizado apenas para trazer algo ilegal para o Brasil (que teria sido descarregado antes de o barco chegar ao iate clube potiguar); ou — o que parece mais provável — que tenha vindo buscar drogas para levar para a Europa, o que explicaria o sumiço dos seus tripulantes antes que a Polícia chegasse.
Uma mulher a bordo
No barco, a ação de busca e apreensão do veleiro feita pela Polícia Federal, em meados de novembro, encontrou (além do manual da embarcação com as três primeiras páginas arrancadas — justamente as que contém o nome do proprietário, outro claro indício de que fora roubado) uma jovem letã, de 29 anos (como a investigação está em curso, a Polícia não divulga os nomes dos envolvidos), que, segundo ela, fora contratada pelo tal capitão russo para cuidar do veleiro, “por três meses”.
Mas a Polícia também encontrou, escondido dentro da cabine do barco, o telefone celular que ela usava para se comunicar com o comandante do veleiro, e que dissera “ter perdido” na cidade.
Barco está sob a guarda da Marinha
“Estamos decodificando as chamadas e mensagens do celular, mas, por enquanto, não há nenhuma acusação formal contra ela, embora o seu passaporte tenha sido retido, e ela esteja proibida de deixar o país”, explica o delegado Gilberto, que julga já haver elementos suficientes para a justiça analisar a devolução do barco aos seus proprietários originais, na Croácia.
“Foram eles que descobriram que o barco estava no Brasil, através de olheiros e rastreadores, já que o furto de veleiros de passeio não são eventos frequentes. “Ainda mais um barco desse tipo”, explica o delegado, acrescentando que, por enquanto, o veleiro — que permanece no Iate Clube de Natal, agora sob a guarda da Marinha —, foi retido apenas por “entrar em território nacional com documentação ideologicamente falsa”.
“O resto dessa estranha história nós ainda vamos desvendar, trabalhando em conjunto com a Interpol”, garante o delegado.
O objetivo era outro
Das três hipóteses aventadas pela Polícia, a menos provável é o simples furto do barco, para ser revendido no Brasil.
“Não teria como, porque logo a falsificação seria descoberta”, explica o delegado. “Certamente, ele foi furtado com outro objetivo, e é isso que vamos descobrir, assim que a investigação terminar, o que não deve demorar”.
Cariocas roubaram veleiro
Embora os roubos de barcos sejam eventos raros, esporadicamente eles também acontecem. Mas sempre com outro propósito, como o uso temporário para alguma atividade ilegal.
No Brasil, um dos casos mais curiosos de furto de barco de passeio movido à vela aconteceu 33 anos atrás, em maio de 1991, quando três jovens cariocas desempregados decidiram furtar um veleiro e com ele viajar para a Austrália, a fim de tentar uma nova vida do outro lado do mundo, já que não tinham dinheiro nem para a passagem.
Mas, por serem inexperientes e despreparados, deu tudo errado, e eles, após quase morrerem na travessia do Atlântico, não conseguiram ir além da África do Sul, onde passaram um ano presos, mas por outro motivo bem mais prosaico: o roubo de comida, já que não tinham dinheiro nem para comer.
Já a história completa do que há por trás do veleiro que foi roubado na Croácia e estranhamente trazido para o Brasil ainda estar por ser revelada.
“Mas será”, garante o delegado Gilberto Pinheiro.
Reportagem
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Fonte: UOL.