Na manhã de 1º de dezembro, Eduardo Strauch, 76 anos, esperava na fila do Aeroporto de Carrasco, perto de Montevidéu, para embarcar para Mendoza, na Argentina. De lá, pegaria um ônibus e viajaria por mais três horas até San Rafael, onde descansaria por uma noite antes de retomar viagem, passando por povoados a cavalo até um acampamento na Cordilheira dos Andes. Essa era a vigésima vez que repetiria o roteiro. O ponto final é sempre o lugar onde sua vida mudou irrevogavelmente há 51 anos.
O Vale das Lágrimas, ponto a quase 4 mil metros de altitude na maior cordilheira do planeta, foi onde ele e amigos sobreviveram a 72 dias em meio a temperaturas abaixo de -30°C, abrigando-se na fuselagem do avião que caiu quando viajavam do Uruguai ao Chile e graças à decisão de se alimentar dos corpos de companheiros mortos. Uma das histórias de luta por sobrevivência mais notórias do mundo.
— Para muita gente, é curioso, não entendem, inclusive entre meus companheiros de odisseia — diz Strauch sobre a decisão de voltar ao local. — Nunca imaginamos querer voltar ao lugar onde vivemos o horror, mas foi também onde vivi alguns dos momentos mais felizes e intensos da minha vida. É o lugar onde organizamos uma sociedade só com o poder da nossa imaginação, sem nenhum recurso material. E agora é onde estão nossos amigos mortos. São meus motivos para voltar.
Dos 45 passageiros que viajaram em um avião fretado da Força Aérea Uruguaia em outubro de 1972, só 16 sobreviveram para contar a história. Eles eram integrantes de um time de rúgbi, todos jovens, a maioria na faixa dos 20 anos, em trânsito para disputar uma partida no Chile quando o avião caiu na cordilheira.
— Eu vejo o túmulo dos meus amigos, 50 anos depois, e choro igual criança. Posso chorar, porque meu organismo agora permite. Naquele momento não, porque não podia perder líquido e bloqueava [as lágrimas]. Era perigoso ficar triste.
‘Sociedade da neve’
Tema de um museu em Montevidéu e narrada em livros, documentários e no filme “Vivos’’ (1993), baseado no livro homônimo que virou febre na época do lançamento, a história ganha agora nova versão para o cinema com “A sociedade da neve’’, filme dirigido pelo espanhol J.A. Bayona que estreou nos cinemas em dezembro e chegou à Netflix na última quinta.
O longa é baseado no livro de Pablo Vierci, jornalista uruguaio que conhecia o grupo desde os tempos de escola. Uma exibição meses antes da estreia reuniu sobreviventes e familiares dos mortos e os aproximou outra vez.
Apesar de contada muitas vezes em conferências e palestras ministradas pelos que voltaram dos Andes — como as apresentadas por Gustavo Zerbino, de 70 anos, que motivaram até a seleção uruguaia de futebol — os sobreviventes continuam destacando a importância de relembrar sua história. Para eles, a repetição da narrativa dá voz e espaço aos que morreram.
— Sem mortos, não haveria sobreviventes. É um pacto mútuo que eles fizeram, no qual se diz: “se eu morrer, você pode usar meu corpo para seguir vivendo”. Nunca me deparei com um pacto assim, jamais havia visto, nem lido sobre— diz o autor do livro que inspirou o filme.
A sociedade que dá título ao livro foi assim batizada pelos próprios sobreviventes. Algo que existia à parte da civilização alheia à montanha, que seguiu sem eles. Na sociedade da neve, cada um tinha uma função. Passados alguns dias, sem sinal de animais, plantas ou qualquer outro alimento e após mastigarem calçados e cintos de couro, alguns escassos chocolates e biscoitos, fizeram então o pacto que possibilitou sua sobrevivência.
— A ideia era rechaçada, era percebida como loucura, mas em pouco tempo nos demos conta de que ou morríamos ou comíamos a carne dos mortos. Muitos pensavam o mesmo, alguns resistiam por motivações religiosas, até que, um dia, todos dentro da fuselagem, tratamos de convencer os que ainda não estavam. Foi muito emocionante, nos oferecemos uns aos outros. Foi um clique para todo mundo. Não havia outra saída. Ou morreríamos todos — lembra Strauch.
Pacto de amor
Zerbino fala em um “pacto de amor”. Ele e Strauch foram os dois sobreviventes que mais vezes regressaram ao local do acidente, inclusive com familiares, mas quase todos lá voltaram.
— Claro que era doloroso, angustiante, mas estávamos vivos. Ao lado havia uma estátua gelada que era o seu melhor amigo, que, por sua vez, estava sentado sobre outra. Ou seja, a morte era natural e viver era lutar — conta. — [Volto] porque ali voltamos à vida. A montanha nos pariu em um lugar onde não havia vida. Só nos restava viver. Vivíamos numa sociedade solidária, onde esse era o único objetivo.
Carteira achada em 2005
Para Strauch, os retornos ao local se tornaram mais frequentes após o mexicano Ricardo Peña o procurar em 2005 com uma descoberta. Fascinado pela história, Peña esteve lá depois de uma ida ao Aconcágua e encontrou o blazer do sobrevivente, que voara durante a queda, ainda com a carteira dentro. Os dois se tornaram amigos e passaram a organizar expedições ao local.
Após a descoberta de Peña, o filho de Strauch, Pedro, de 33 anos, resolveu fazer a viagem com o pai. Desde então, foram mais de dez visitas, incluindo a ida no início de dezembro.
— Desde a primeira vez, o que me atrai é a imensidão de natureza e de tudo que se pode associar a uma transcendência espiritual, que alguns chamariam de Deus. Quando se está ali, ao menos se entende o quão difícil foi. É uma cordilheira muito árida, não há absolutamente nada vivo lá em cima, ainda mais no inverno — diz Pedro. — Estando lá, você é capaz de captar a gravidade da experiência. Meu pai atribui sua fé e sua paz mental à beleza do lugar e à natureza. Em uma situação limite, ele teve de seguir em frente e desfrutava de um pôr do sol, de um amanhecer, do céu azul.
Dez dias depois da queda do avião, os sobreviventes ouviram pelo rádio que as buscas só seriam retomadas no ano seguinte, para recuperar os corpos. Após 16 dias, uma avalanche os soterrou e matou outras oito pessoas. O resgate, 72 dias depois da queda, só foi possível porque Fernando Parrado e Roberto Canessa foram atrás de ajuda. Depois de dez dias de caminhada, encontraram um vaqueiro, Sergio Catalán, e avisaram que estavam no avião que caiu nas montanhas.
— Passava pela minha cabeça a minha mãe chorando porque o filho dela havia morrido, e eu queria dizer a ela que eu estava vivo. Era meu motivo para sair de lá — conta Canessa, hoje com 70 anos. — A nossa história segue fascinando as pessoas porque é sobre o mundo que errou, que disse que estávamos mortos. E nós seguíamos vivos.
Fonte: O Globo.