Na Rua Leopoldo Domingues, no bairro Comendador Soares, a cerca de 2 quilômetros do Rio Botas — que transbordou em diferentes trechos de Nova Iguaçu — na Baixada Fluminense, a dona de casa Vitória Martins, de 57 anos, tentava nesta terça-feira recuperar o pouco que não perdeu com a enchente do fim de semana. Com a roupa do corpo molhada e um chinelo nos pés, ela caminhava pelo quintal, ainda com lama chegando ao tornozelo, até a rua, carregando os destroços.
O nível da água da chuva na localidade chegou a quase dois metros e destruiu parte dos móveis, queimou o motor da geladeira e estragou os alimentos que estavam no armário da cozinha. Não foi um caso isolado: em algumas regiões da cidade, só foi possível se locomover de barco, e moradores tiveram dificuldades para entrar em casa e retirar os eletrodomésticos danificados. Vitória, o genro, a filha, os dois netos de 6 e 8 anos — um deles com transtorno de espectro autista — e o marido, de 77 anos e cadeirante, passaram a madrugada de sábado para domingo ilhados em cima de um colchão. Ao GLOBO, a dona de casa deu detalhes de como foi sobreviveu à enchente.
Leia o depoimento de Vitória Martins ao GLOBO:
“Quando eu era mais nova, já notava que as pessoas me olhavam estranho quando visitavam a nossa casa. Era apenas um quintal grande com o muro levantado. Não que hoje esteja muito diferente, mas consegui, com o esforço do meu trabalho, construir um quartinho ao lado para minha filha morar com meu genro e os meus netos. Um deles tem transtorno do espectro autista e precisa de cuidados. Meu marido é aposentado e cadeirante. Ele também precisa de cuidados. A nossa vida aqui não é fácil. Naquela época, quando chovia, a nossa família procurava se abrigar no alto, por medo da enchente.
Em abril de 2022, passamos por uma situação de muito perrengue. O Rio Botas inundou e alagou todas as casas do bairro. Perdi quase tudo o que tinha. Levei meses para comprar um fogão novo, uma geladeira e o resto das coisas. A prefeitura, naquela ocasião, prometeu ajudar. Mas nada mudou. Pelo contrário, não recebemos nenhum apoio. Se não fossem os vizinhos se ajudando, estaríamos perdidos.
Era por volta das 19h de sábado quando a chuva começou a ficar forte. Trovejava bastante, e a luz já dava sinais de que ia embora. Pedi para o meu genro me ajudar a colocar as coisas em cima da cama, já que tinha um pouco de água entrando pela porta e janela. Eu não imaginava que a chuva transbordaria o rio. Achei que não fosse mais passar por isso. Não demorou muito para a água começar a subir. Nossas roupas ficaram molhadas, e os móveis começaram a boiar pela casa. A água chegou a quase dois metros de altura. Foi uma correria para conseguir colocar o meu marido em cima do colchão com a cadeira de rodas. Minha filha segurou as crianças enquanto ficava sentada numa cadeira, colocada em cima de uma mesa para não afundar. Foram horas de terror.
A luz foi embora. Ficamos no escuro, com fome, molhados e sem poder dormir. Passei 48 horas assim. Na segunda-feira de tarde, uma vizinha, que também perdeu alguns móveis, se solidarizou com a nossa situação e dividiu com a gente o restante de uma comida que havia sobrado de uma festa. Eu e a minha família comemos farofa com um pouco de salada de macarrão. Era tudo o que tinha para comer. Não dava para cozinhar, porque o fogão deu perda total e a compra de mês que fizemos se perdeu em meio à água que entrou na casa.
É muito triste passar por isso, sabe? Vocês não imaginam como dói ver seu neto chorando, pedindo comida e a gente não ter para dar. Infelizmente, essa é a nossa sina. Lutamos por anos para recuperar o que a gente pode e perdermos tudo de novo, pouco tempo depois. O que vi naquela madrugada foram todos os meus pertences indo embora com a água, novamente.
Peço forças a Deus para tentar me reerguer com a minha família. Tentar recuperar tudo o que foi perdido. O mais importante é todos estão bem. Nós sobrevivemos àquela noite, mas até quando vai ser assim? Será que os governantes vão esperar que mais vidas se percam para fazer algo?”.
Fonte: O Globo.