Entre as facções mais conhecidas — e temidas — nos presídios paulistas, existe uma que se destacou pela influência que exercia sobre os presos e até sobre os funcionários das penitenciárias, seja pelo respeito à sua força ou pelo medo de suas práticas. Seu nome: Seita Satânica, cujos membros, como o nome já sugere, são adoradores de Satanás.
Apesar de existir desde o final dos anos 60, ela começou a se tornar poderosa ao ser organizada com a chegada de Idelfonso José de Souza ao Carandiru, em 1993. Ele moldou a seita como uma facção criminosa, disseminando seu ideal por outros presídios. Esse líder, conhecido por sua frieza, conquistou a liberdade em 2010, após quase 20 anos de prisão.
No Carandiru, a concentração de membros da Seita Satânica se dava no quarto andar do Pavilhão 9, embora houvesse membros espalhados em outros andares no pavilhão 8. Suas celas eram pintadas de preto, com desenhos e marcas satânicas, como o número 666 (o número da besta, segundo o Apocalipse bíblico) e imagens de demônios.
“Eu era responsável por supervisionar a conduta desses detentos nos pavilhões, então frequentemente os escoltava para atendimentos judiciais com advogados”, contou ao UOL o agente penitenciário aposentado Ronaldo Mazotto Lima.
“Enquanto conduzia revistas em suas celas, eu enfrentava o desconforto de mexer nos utensílios utilizados em rituais, como vasos de oferendas, velas e símbolos satânicos. Retirava objetos, encontrava odores repugnantes, números 666, roupas escuras, e até mesmo recipientes contendo sangue. Meus colegas tinham medo de mexer nessas coisas”, diz o agente.
Colega de profissão de Mazotto, o agente penitenciário Diorgeres de Assis Victorio se recorda do primeiro contato com a Seita Satânica que, segundo ele, não foi agradável. Sua presença se destacava pelo comportamento peculiar e pelas vestes de seus membros, hoje proibidas pela Secretaria de Administração Penitenciária.
Das celas onde viviam os membros, era possível sentir o aroma de cigarro, charutos e a famosa “Maria Louca” Imagem: Ensaio fotográfico de João Wainer no Carandiru, nos anos 1990.
Banho de sangue
As revistas pessoais nesses detentos eram realizadas por poucos servidores, já que a maioria temia tocar neles, acreditando em maldições devido ao culto ao demônio. Diorgeres de Assis Victorio nunca testemunhou os rituais secretos da Seita Satânica, mas lembra-se que as paredes da cela onde viviam exibiam objetos e imagens marcantes. Uma garrafa PET furada, que emanava forte odor, era usada em rituais de banho de sangue, com fluidos de diversas origens, animais e humanos.
Uma das coisas que mais me impressionou foi uma garrafa PET furada que eles tinham e que fedia muito. Eles disseram que o cheiro forte agrada a Lúcifer. Na primeira vez que fui revistar a cela — e eu era um dos poucos que aceitava fazer isso — eu quase vomitei. Já tinha feito um Curso de Sobrevivência e de Prisioneiro de Guerra no Exército, mas nada se comparava àquela cela. Essa ‘garrafa PET furada’ era usada como um chuveiro, só que o banho não era de água, era de sangue humano, de ratos, ou de qualquer tipo de sangue que eles conseguissem. Diorgeres de Assis Victorio
A entrada na Seita Satânica era um compromisso profundo. Os membros não podiam recusar rituais ou evitar queimar-se em oferendas. “Idelfonso José de Souza era conhecido como o ‘Pai’, e destacava-se como figura central na facção, sendo reverenciado como Satã”, afirma Mazotto. Victorio confirma a reverência dos prisioneiros a Souza como o líder da seita.
Os homicídios cometidos pelos membros da facção contra desafetos incluía arrancar-lhes a cabeça e o coração. O órgão era comido em rituais, diz Mazotto. O UOL não conseguiu localizar Idelfonso José de Souza ou sua defesa.
Mãos queimadas para agradar Satã
Das celas onde viviam seus membros, era possível sentir o aroma de cigarro, charutos e a famosa ‘Maria Louca’ invadindo o ar. A cela 29, localizada no Raio II, era o centro de suas atividades, especialmente após os rituais sanguinários na brutal ‘Segunda sem Lei’, que ocorriam na famigerada Rua 10 do presídio.
Nossa rotina incluía liberar a cela 29 às 6:30 da manhã para os presos poderem realizar a faxina no corredor. Era comum acompanharmos os presos até a enfermaria, para que pudessem fazer curativos em suas mãos antes de realizarem as tarefas diárias. Elas eram frequentemente queimadas em rituais para agradar a Satã. Os machucados eram bem feios, causados pelas queimaduras, acredito que feitos com a chama das velas ou charutos, mas eles estavam acostumados, afirma Victorio.
A aparente harmonia entre a seita e outras facções que se disseminavam no cárcere desmoronou com a ascensão do PCC (Primeiro Comando da Capital). O confronto resultou em mortes e, durante uma rebelião em 2006, o PCC consolidou seu poder, reduzindo significativamente os membros da Seita Satânica no Carandiru. Mazotto se recorda de um desses conflitos. Ele estava de serviço no Carandiru quando uma rebelião eclodiu e dois importantes líderes da seita foram mortos.
“Naquele dia de manhã, bem cedo, estávamos a postos no quinto andar do Pavilhão 9, onde cerca de 2.300 presos estavam alojados. A cadeia, em silêncio, indicava perigo iminente. Ao subirmos para realizar a contagem, a atmosfera estava carregada. Por volta das 10 horas, presos mascarados e armados com facas cercaram a carceragem, nos mantendo como reféns.”
A sala de segurança tornou-se o cárcere temporário dos agentes, submetidos a uma pressão psicológica intensa. A situação, segundo Mazotto, era terrível, com presos ameaçando matar os agentes o tempo todo. O alarme soou na prisão, oficializando o terror. Somente às 14 horas, os presos garantiram a liberdade dos reféns.
“A história das facções criminosas no Brasil revela conflitos sangrentos por territórios. No Carandiru, a rivalidade entre o PCC e a Seita Satânica resultava em mortes e banhos de sangue. Embora a Seita tenha diminuído em números, sua existência persiste, e faltas disciplinares que indicam o seu funcionamento regular têm sido registradas em diversas prisões do interior de São Paulo”, garante Victorio.
UOL