O presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Alexandre de Moraes, impôs aos donos de dois perfis no X (antigo Twitter) uma multa que, ao todo, deve ficar em cerca de R$ 600 mil.
A decisão, de junho e que impõe uma multa diária de R$ 20 mil aplicada por pelo menos um mês, afirma que houve “nítido descumprimento” por parte de Wagner Pereira e Rita de Cássia Serrão de medida imposta anteriormente.
Isso porque, no fim de janeiro, ao ordenar ao X que reativasse essas contas, Moraes determinou que haveria a aplicação dessa multa diária na hipótese de eles voltarem a divulgar conteúdos bloqueados ou de publicarem “outras mensagens instigadoras ou incentivadoras de golpe militar, atentatórias à Justiça Eleitoral e ao Estado democrático de Direito”.
As contas haviam sido suspensas em novembro de 2022 por postagens que foram consideradas desinformação contra a integridade do processo eleitoral.
Ao longo do processo, entretanto, não houve intimação de nenhum dos dois para que tivessem ciência de que a manifestação de ambos na internet estava sujeita a tais condições. Até ali as comunicações foram direcionadas apenas à plataforma de rede social.
A decisão com a multa por descumprimento se deu em 1º de junho, com ordem de incidir desde 1º de maio até a data da remoção das postagens, o que foi feito pelo X, já que na mesma decisão Moraes determinou à plataforma que apagasse oito links.
Nessa data, o ministro também retirou o sigilo do processo e determinou a “imediata intimação dos envolvidos”.
Rita de Cássia afirmou à Folha, por telefone, que não foi intimada ou notificada pelo TSE. Ela diz que, à época em que seu perfil estava suspenso, tentou ter acesso ao processo com um advogado, mas, devido ao sigilo, não conseguiu.
Ainda segundo Rita, ao suspender a conta, o Twitter teria informado que a medida se devia a uma ordem do tribunal.
No relatório do TSE que embasou a decisão de Moraes para a multa por descumprimento, consta apenas uma postagem de Rita —publicada em 1º de maio e com 61 visualizações.
“A mais pura verdade o que nos deixa a certeza de que eles não venceram a eleição mas sim tomaram o poder”, tuitou ela junto ao post de um articulista que dizia que a popularidade de Lula não se comparava à de Bolsonaro.
Moraes afirmou que “constata-se a recalcitrância de Wagner Pereira e Rita de Cássia na propagação de desinformação contra as eleições, em franca apologia a atos antidemocráticos”.
A reportagem tentou contato também com Wagner, mas não teve retorno.
Procurado pela Folha, o TSE informou via assessoria de comunicação que ainda está no processo de localização de ambos, mas não respondeu porque não houve intimação da decisão de janeiro.
No início de outubro, Moraes solicitou à Corregedoria Eleitoral que informasse os endereços dos dois registrados no Cadastro Eleitoral. Em 9 de novembro, quando se despedia do posto de corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Benedito Gonçalves informou o endereço de Rita, mas quanto a Wagner afirmou que havia homônimos.
A resolução eleitoral usada por Moraes para emitir a multa foi aprovada às vésperas do segundo turno da eleição de 2022 para combater desinformação sobre o processo eleitoral. O tribunal ampliou seu poder de polícia, prevendo atuação sobre esses conteúdos mesmo sem ser provocado.
Conforme mostrou a Folha, o TSE negou, em novembro deste ano, o acesso a dados quantitativos sobre perfis e conteúdos bloqueados pelo tribunal com base nela, alegando segredo de Justiça.
Especialistas consultados pela Folha veem, de modo geral, problemas na aplicação de multa por descumprimento sem intimação anterior. De 7 entrevistados, 1 não opinou sobre esse aspecto.
Outra camada de discussão levantada tem relação com o fato de a decisão ter sido tomada em junho, meses depois de encerrado o processo eleitoral, marcado pela diplomação dos eleitos. Há quem defenda a atuação fora do período e quem a veja criticamente.
Artur Pericles, doutor em direito constitucional, destaca ainda que a resolução previa a atuação de ofício do presidente do tribunal apenas para casos de conteúdo idêntico àquele já julgado pelo plenário, mas não previa a atuação de ofício para suspensão de contas nem sobre conteúdo não considerado pelo plenário.
“Nesse ponto ao que parece as decisões vão além da resolução aprovada pelo TSE”, afirma.
Paulo Rená, que é codiretor da ONG Aqualtune Lab (integrante da Coalizão Direitos na Rede) , afirma que sem intimação anterior não há como exigir o pagamento da multa. “Se não houve intimação, não tem fundamento no caso para exigir o cumprimento da decisão.”
Também a advogada eleitoral Paula Bernardelli considera que a multa será alvo de discussão no processo. “A multa por descumprimento exige ciência de uma ordem a ser descumprida”, diz.
Quanto à questão da competência da Justiça Eleitoral, Paula afirma que ela não termina pela passagem do tempo e destaca que a petição em que se deu a multa tinha se iniciado ainda no processo eleitoral.
Clarissa Maia, que é advogada e doutora em direito constitucional, diz que, apesar de a Justiça Eleitoral continuar julgando os processos depois de encerrado o processo eleitoral, eles não podem abarcar atos ocorridos fora do processo eleitoral.
Além da falta de intimação, ela vê como problemático o fato de a própria decisão impondo a possibilidade de multa também ter sido feita depois de encerrado o período eleitoral.
Também o advogado eleitoral Ricardo Penteado entende que não caberia esse tipo de atuação após o período das campanhas eleitorais.
Ele afirma ainda que, com base na súmula 18 do TSE, mesmo durante o processo eleitoral, o juiz eleitoral não teria legitimidade para, de ofício, instaurar procedimento com a finalidade de impor multa, quando estiver atuando com seu poder de polícia.
A advogada e professora Vânia Aieta, coordenadora-geral da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), foi a única a divergir quanto à intimação. “Isso [a falta de intimação] é absolutamente irrelevante na Justiça Eleitoral”, diz ela. “Se já estavam no erro antes, eles já estavam no descumprimento”.
Ela afirmou ainda que o poder de polícia da Justiça Eleitoral é permanente e que, no caso específico, não se trata de uma nova ação.
O promotor de Justiça Rodrigo López Zilio, por sua vez, avalia que a decisão representa um reconhecimento de uma expansão da competência da Justiça Eleitoral, mas ele considera que este é um entendimento razoável no caso específico da defesa da integridade do processo eleitoral.
Créditos: Folha de S. Paulo.