Quem nunca ouviu as frases: “brigar apimenta a relação” e “sexo é melhor após uma briga”. Elas podem ser ter um fundo de verdade, mas podem também romantizar os conflitos entre casais de uma forma perigosa, segundo a psicanalista Fabiana Guntovitch que acaba de lançar o livro “Chega de brigas: pequeno manual para viver em paz”.
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— O sexo é bom depois de uma briga, porque tem aquela urgência, ferocidade e o medo de perder o outro, porém, ele também pode ser seguido de insegurança e dor — afirma a psicanalista em entrevista ao GLOBO.
Guntovitch diz ainda que a sociedade está com pavio mais curto e com a cabeça mais quente, pois estamos vivendo em um mundo egocêntrico, onde a tendência é fazer o ser humano olhar para o próprio umbigo em uma relação.
— Existem alguns pilares que ainda são importantes manter em um relacionamento duradouro, como: o respeito, a admiração, a cerimônia e a paixão. Acredito que as pessoas se separam porque a relação deixa de fazer sentido. É um desafio buscar e manter esse sentido por muito tempo, ainda mais em uma sociedade onde escolhemos as pessoas por uma prateleira de aplicativo — afirma.
Na entrevista a seguir, a psicanalista mostra como as pessoas podem evitar uma discussão conversando, impondo e estabelecendo seus limites, sejam eles indispensáveis ou os que cabem uma negociação. Confira a entrevista:
A senhora afirma que as pessoas andam com pavio mais curto, brigando mais por qualquer motivo. Existe uma razão para isso acontecer?
Vivemos em uma sociedade bastante egocêntrica. O ser humano já tem essa tendência de olhar para o próprio umbigo antes de olhar para o todo, mas com a vida moderna, onde as redes sociais falam sobre você e giram em torno de você e o que mais importa é a percepção das pessoas sobre você, os egos estão inflados e inflamados. Qualquer coisinha que machuque o ego vira motivo para uma grande discussão.
Durante o isolamento na pandemia, as pessoas passaram a se relacionar de uma maneira extremamente íntima e até mesmo superficialmente, socialmente. Houve toda uma movimentação, adequação que não foi fácil. Foi o período de maior número de divórcios nos últimos anos, famílias romperam, foi bem complicado. E agora estamos saindo dessa situação de alta tensão, voltando ao mundo real. Essa mudança não é automática.
Quais são agora os principais motivos de briga entre os casais?
Os relacionamentos, assim como as pessoas, são complexos e subjetivos. Existem alguns pilares que são importantes: o respeito, a admiração, a cerimônia, que eu acredito que em uma relação de longa duração sempre são bem-vindos, e a paixão, que se transforma em amor. Acredito que as pessoas se separam porque a relação deixa de fazer sentido. É um desafio buscar e manter esse sentido por muito tempo, ainda mais em uma sociedade onde as relações são tão liquidas e fluídas. Um exemplo simples sobre isso: você chama um Uber, se ele demorar cinco minutos as pessoas cancelam. Se as pessoas não conseguem esperar um carro por cinco minutos, como vão fazer em uma relação de longa data que você tem que se relacionar, ter paciência e empatia. Se a gente começa a cancelar tudo em nossa volta, a primeira coisa que o outro fizer e você não gostar, ele também será cancelado.
Quando os casais chegam ao consultório, eles já estão com o relacionamento perto do ponto final ou ainda têm aquela esperança de luz no fim do túnel?
Para um casal buscar uma terapia de casal, infelizmente, eles buscam quando já está bem feio. É raro um casal que chega aqui com um intuito mais preventivo da relação que quer construir uma relação com bases mais sólidas — normalmente eles chegam aqui e eu me sinto um bombeiro, apagando um incêndio. Mas ninguém busca uma terapia de casal se não houver uma esperança de, pelo menos um dos lados, querer resolver a situação, dar a volta no problema e encontrar formas mais estratégicas de resolvê-los, isso porque é um investimento grande não só de dinheiro, mas tempo e emoção. Mexe muito com o psicológico das duas pessoas que estão se consultando.
Quem tem mais facilidade para perdoar, o homem ou a mulher?
É uma construção. Eu acho que o machismo dificulta o perdão. Assim como dificulta o olhar empático e a percepção de ser humano, porque ele é falho. E por outro lado, as mulheres, se olharmos historicamente, percebemos que vieram de casamentos em que a traição do homem para elas era naturalizada. Não existia essa questão do perdão, era naturalmente perdoado. Temos esse histórico que favorece o pensamento de que as mulheres perdoam mais os homens. Mas a capacidade de perdoar ou não, está relacionada ao autoconhecimento e autopercepção. Não ao gênero.
No livro, há uma passagem destacando a importância de impor limites para construir uma relação e evitar discussões. Quem tem mais dificuldade de impor limites?
Percebo que as mulheres têm mais dificuldade de impor limites saudáveis nas relações do que os homens por uma questão histórica, social. As meninas ‘precisam’ ser boazinhas, gentis, obedecer, não podem falar palavrão. Meninos ‘podem’ muito mais do que as meninas. São tabus e machismos que herdamos e tentamos quebrar, mas isso é um processo e ele é extremamente doloroso. Da mesma forma que foi instaurado que homens não choram. Também é um processo que precisa ser mudado. Esse masculino tóxico é ruim para os homens também, para a sociedade como um todo. Fico muito feliz que estamos conversando e revendo todos esses conceitos e conversando abertamente sobre isso. Cabem aos pais criarem os filhos com a cabeça mais aberta.
A senhora acredita na célebre frase que diz que as brigas apimentam a relação?
Para alguns casais sim. Apesar de que isso não é saudável. Existem pessoas que são viciadas em adrenalina, que precisam dela. Quando uma relação chega em um estado de platô e calmaria, elas entendem que isso é falta de amor e elas precisam brigar, para ter medo de perder, para que elas tenham essa sensação de que o medo de perder e da não perda, significa que elas são amadas. Na realidade, essa briga que apimenta a relação é uma dinâmica desajustada de autoafirmação do amor. Tem tantas formas de apimentar a relação, você realmente precisa brigar para isso? Que falta de imaginação. Se um do casal for viciado em adrenalina e o outro não for, por exemplo, eles não ficam juntos.
E o sexo é realmente é melhor depois de uma briga?
Pode ser bom, mas não dá para falar se é melhor ou pior, isso porque tem a urgência. Por exemplo, quando você tem uma relação sexual com seu parceiro e vocês não brigaram, estão vivendo a vida normal, a vida sexual é excelente e acontece porque querem se conectar um com o outro. Agora, a relação sexual depois de uma briga tende a ter mais voracidade, o casal ou um dos parceiros acaba buscando uma fusão que não permita a separação. Essa relação é diferente do habitual. Porém, ela pode vir com uma ressaca imensa, por causa de inúmeras questões envolvidas, que trazem insegurança e dor. Mas ela será mais intensa, mais urgente, por conta do medo da perda, que faz com que você necessite dessa fusão com o outro. É importante não romantizar isso, não achar que o sexo depois de briga é sempre melhor do que o sexo normal.
A romantização dos conflitos pode ser um dos motivos do relacionamento abusivo?
Sim, porque muitas pessoas aprenderam que brigar é um ato de amar e não é. São coisas totalmente diferentes. Pessoas que crescem em um ambiente abusivo, por outro lado, aprendem que este é um ato de amar, porque é tudo o que elas conhecem e acabam replicando isso mais adiante. A gente precisa desromantizar as brigas entre os casais.
O que pode ser feito para evitar brigas nas relações?
Conversar é o principal. Precisamos ter liberdade para falar e oportunidade para escutar. Não adianta um querer conversar e o outro não escutar. Precisamos encontrar formas de nos comunicarmos que sejam estratégicas na relação. Um pode querer conversar no calor do momento, o outro pode querer falar horas e dias depois, mas para o ansioso, por exemplo, esse tempo pode ser um pânico. Então é importante o casal conversar, saber qual é o tempo de cada um, e comunicar quanto tempo precisa. Se não vamos conversar hoje, quando? Amanhã, ou mais tarde. É importante estabelecer os limites de cada um, quais são os tópicos que você não renuncia e quais você repensaria. Os nossos ‘não inadmissíveis’ não podem dobrar. Isso não é falta de amor, mas amor próprio. Em uma relação saudável, os dois têm que ter espaço para ter amor-próprio. Você precisa ter a oportunidade de ser você mesmo na relação e poder conversar sobre.
O Globo