A escassez de pilotos em companhias aéreas estrangeiras pode representar uma chance para os profissionais brasileiros voarem ainda mais alto. Diante da falta de profissionais habilitados para conduzir jatos comerciais em seu território, os Estados Unidos abriram suas fronteiras recentemente e passaram a buscar mão de obra em outros países, como o Brasil, concorrendo com áreas da Ásia, particularmente do Oriente Médio, que já vêm recrutando pilotos também por aqui.
Há pouco tempo, os EUA não incluíam os pilotos entre as profissões elegíveis para visto de trabalho no país. Mas isso mudou, embora ainda seja necessário preencher uma série de requisitos e apresentar documentos para obter a autorização de trabalho por lá. Isso inclui uma carta que comprove a ligação do profissional com alguma entidade sindical em seu país de origem.
Presidente do Sindicato dos Aeronautas (SNA) no Brasil, Henrique Hacklaender diz que, entre 2021 e 2023, o número de cartas desse tipo que assina aumentou significativamente, num termômetro da saída de pilotos brasileiros do país:
— Durante 2021 a gente assinava de três a quatro cartas por mês. Depois que o governo americano abriu as fronteiras, são cerca de dez por semana.
Progressão na carreira
O piloto Lucas Telles, de 36 anos, trabalha há oito em uma companhia no Catar. Ele aceitou a ideia de viver do outro lado do mundo principalmente pela chance de progressão na carreira, pelos benefícios e a segurança. Agora, prepara outra mudança com a família:
— Pretendo ir para os EUA. Sempre gostei do país, tenho família lá, e é mais próximo do Brasil. Além disso, as melhores oportunidades estão lá, nenhum lugar bate o que os EUA oferecem. Estou na torcida para conseguir o visto, seria meu próximo passo na carreira como profissional.
A abertura das fronteiras dos EUA para esses profissionais acontece após muitos pilotos se aposentarem enquanto a demanda por voos crescia aceleradamente no pós-pandemia.
Segundo a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), as aéreas americanas tiveram um aumento de tráfego de 18,9% só em setembro de 2023 em relação ao mesmo período de 2022. No mundo, a alta foi de 30,1%. Globalmente, o tráfego está em 97,3% do nível pré-Covid.
Telles deu entrada no visto de trabalho nos EUA no início do segundo semestre. E, assim como muitos brasileiros, contratou um escritório jurídico para agilizar o processo. O custo, diz, vai de US$ 8 mil a US$ 15 mil (R$ 39 mil a R$ 73 mil).
Efeitos da pandemia
Nos EUA, as oportunidades vão além das grandes companhias. O piloto Fernando Sporleder, de 59 anos, vive há cinco nos EUA, onde voa para a Atlas Air, de transporte de cargas. Ele diz ter muitos colegas brasileiros no exterior.
— A qualidade de vida aqui é muito boa, e a remuneração é bem superior— comenta.
A falta de pilotos nos EUA e no mundo é uma espécie de refluxo da pandemia, uma das maiores crises da aviação mundial. Com aviões no chão, houve muitas demissões e aposentadorias antecipadas. Com o fim das restrições sanitárias, o cenário se inverteu, com forte recuperação da demanda e uma corrida das empresas para recompor o quadro de profissionais.
— O terceiro trimestre de 2023 terminou em alta, com demanda recorde de passageiros e um forte tráfego internacional contínuo — disse Willie Walsh, diretor-geral da Iata em setembro.
Não são apenas as aéreas americanas os destinos de pilotos brasileiros: companhias de outros países também vêm disputando profissionais brasileiros. Principal aérea dos Emirados Árabes Unidos, a Emirates já conta com 143 pilotos brasileiros em seus quadros, número que deve aumentar.
Em novembro, a empresa realizou um evento de dois dias no Brasil para recrutar profissionais. Um dos critérios de avaliação da Emirates é a quantidade de horas de voos acumulada. Quanto maior, mais atrativo é o currículo de um piloto.
Em termos de mão de obra especializada, o Brasil é reconhecido mundialmente pela qualidade dos pilotos. Para atraí-los, diz Hacklaender, do SNA, as estrangeiras oferecem salários altos e benefícios:
— Um comandante brasileiro recebe aqui, em média, US$ 6 mil (R$ 29,1 mil) por mês. Nos EUA, as vagas que pagam menos começam na faixa dos US$ 8 mil (R$ 38,9 mil), mas há chinesas que chegam a oferecer US$ 20 mil (R$ 97,2 mil).
Impacto no Brasil
O comandante Gustavo Braccaioli, de 52 anos, voa há 34 e está há 17 na Emirates. Hoje, faz de cinco a seis voos por mês, com média de 75 a 89 horas mensais. A decisão de mudar de país foi influenciada também pela chance de crescimento pessoal, ele diz:
— Morar no exterior como expatriado oferece muitas oportunidades, inclusive a de aprender sobre culturas diferentes, conhecer pessoas diferentes com origens diversas e, profissionalmente, permite que a pessoa expanda seus conhecimentos.
No Vietnã desde 2019, o piloto Marcelo Jorge da Silva, de 52, pensou na chance de uma melhor qualidade de vida. Ele destaca a oportunidade de passar mais tempo com a família com um salário melhor. Como a companhia em que trabalha, a Bamboo Airways, passa por uma fase difícil, ele diz já ter outras vagas em aéreas do mundo em vista:
— Já tenho processos de entrevistas agendados para Emirados Árabes, Hong Kong, Cazaquistão e Europa. O mercado de pilotos mundo afora está realmente aquecido.
Para o presidente da SNA, a migração de pilotos para os EUA somada à recuperação da aviação após a pandemia pode causar um efeito cascata, intensificando a escassez de pilotos também no Brasil em médio prazo. Hacklaender diz que as aéreas nacionais têm aberto vagas num ritmo mais lento que as estrangeiras:
— Há estudos de órgãos internacionais que informam que haverá falta de pilotos (no Brasil) em dez anos. Se nada for feito vamos passar por uma recessão de profissionais. E as empresas brasileiras vêm contratando em um movimento mais lento que as demais.
O que dizem as aéreas
O GLOBO procurou as três principais companhias aéreas brasileiras. A Azul diz contar com um quadro adequado e que possui um programa interno para formação de tripulantes.
A Gol informa que acompanha o “comportamento do mercado com demandas e ofertas”, acrescentando que está atenta aos estudos sobre o setor. A Latam afirma que vem ampliando seu quadro de copilotos e comandantes neste ano para atender ao mercado brasileiro.
O professor Jorge Eduardo Leal Medeiros, do Departamento de Engenharia de Transportes da Escola Politécnica, da Universidade de São Paulo (USP), também avalia que o Brasil deve sentir os efeitos da falta de pilotos no mundo. Para ele, uma das soluções é ampliar o espaço das mulheres no setor.
De acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), há no Brasil, hoje, 57.849 pilotos de avião e de helicópteros, sendo 56 mil (96,8%) homens e apenas 1.849 (3,2%) mulheres.
— Eu acredito que (a falta de pilotos) vai atingir o Brasil de curto a médio prazo. E as possíveis soluções para isso são o investimentos em mais escolas de formação de pilotos, flexibilização da legislação brasileira para permitir mais pilotos estrangeiros aqui e abrir espaço para que mais mulheres voem — diz Medeiros.
Créditos: O Globo.