“Abraço de urso” é uma expressão comumente usada para descrever a relação dos Estados Unidos com Israel, seu maior aliado no Oriente Médio. Por trás dela, duas ideias principais: proteção e coerção.
Diferentes presidentes americanos moveram esse pêndulo mais para um lado ou mais para o outro, mas talvez nunca tão rápido e de modo tão intenso quanto Joe Biden no decorrer do atual confronto com Gaza. Para analistas, a provável sequela pós-guerra será a emergência de uma nova dinâmica dessa relação.
Inicialmente, a reação de Biden aos ataques perpetrados pelo grupo terrorista Hamas foi de apoio total a Tel Aviv, militar, diplomático e político. Distanciando-se do tom ameno pelo qual é conhecido, o presidente americano fez os discursos mais enfáticos de sua Presidência, visivelmente movido pela violência sofrida pelo aliado. “Eu sou um sionista”, disse.
Biden descreveu quase graficamente os ataques, reproduzindo os relatos israelenses de decapitações de bebês e estupros de mulheres, e reforçou que os EUA estavam “100%” ao lado de Tel Aviv. Pouco mais de uma semana após os ataques, o americano foi pessoalmente a Israel e, numa imagem simbólica, deu um abraço no primeiro-ministro Binyamin Netanyahu ao descer do Air Force One.
Mas, pouco depois, alertou: “não cometam os mesmos erros que nós”, em referência à Guerra no Iraque.
Lá fora
Os EUA mantiveram uma presença constante em território israelense, com o objetivo de prestar apoio –e moderar– as operações militares. Falando sob condição de anonimato, oficiais da Casa Branca dizem que, inicialmente, os planos de Israel para a ofensiva eram “muito problemáticos”, e foram alterados sob orientação de Washington.
Mas, publicamente, críticas da comunidade internacional e de organizações de direitos humanos sobre as mortes de civis em Gaza eram rebatidas por membros do governo sob o mantra de que Israel tem o direito e o dever de se defender, somadas a questionamentos sobre a confiabilidade dos números, contabilizados por autoridades palestinas ligadas ao Hamas.
Passados dois meses, é difícil imaginar a cena do abraço se repetindo. Na última semana, em um gesto de ruptura, Biden criticou publicamente Netanyahu, classificou os bombardeios a Gaza como “indiscriminados”, recomendou “mais cuidado” com civis e disse que o governo israelense não quer uma solução de dois Estados.
As declarações cimentaram a nova abordagem sinalizada por auxiliares, que elevaram o tom dos alertas, nos últimos dias, sobre o impacto das operações a civis e nos apelos para a entrada de mais ajuda humanitária.
O recálculo de rota sugere a perda de força da diplomacia do “abraço de urso” defendida por Biden, e que o colocou em diversos momentos em choque com Barack Obama quando era vice-presidente.
Relatos sobre a relação entre os dois apontam Tel Aviv como um dos principais pontos de fricção. Embora ambos concordassem com a necessidade de retomada das negociações entre israelenses e palestinos, Obama acreditava que Netanyahu só voltaria à mesa se pressionado publicamente, enquanto Biden defendia uma abordagem nos bastidores, temendo alienar o aliado.
“Biden acredita que ele pode controlar os eventos da guerra Israel-Hamas abraçando, com esse abraço de urso, sendo muito próximo, intimamente próximo dos israelenses”, diz Ilai Saltzman, diretor do Instituto Gildenhorn para Estudos de Israel da Universidade de Maryland.
China, terra do meio
“A abordagem do governo Obama era de que, criando essa fresta, essa espécie de separação, você poderia ser mais objetivo em relação aos palestinos e ao mundo árabe, e também em termos de tomar suas próprias decisões”, complementa Saltzman.
Na sua visão, no entanto, a abordagem de Obama falhou –no limite, Israel não aceitou um congelamento total de novos assentamentos na Cisjordânia e nas proximidades de Jerusalém, como demandaram o ex-presidente americano e lideranças palestinas, o que levou ao fracasso do intento.
Já Biden conseguiu algumas vitórias, como evitar que Israel ampliasse o confronto no Líbano, a entrada de ajuda humanitária e uma pausa nos ataques para a saída de reféns da região. No entanto, a quebra dessa trégua, com a retomada de operações em terra por Israel, foi um ponto de inflexão para os EUA, que desde então tornaram públicas as pressões nos bastidores, culminando nas declarações de Biden na última semana.
A isso, soma-se a divergência sobre o que fazer com Gaza depois da guerra. Enquanto Israel sinaliza a intenção de manter algum controle sobre o território, americanos defendem uma solução sob o comando da Autoridade Nacional Palestina. A divergência, que vinha sendo tratada nos bastidores, também passou para a arena pública nos últimos dias.
A recalibragem diplomática dos EUA responde ainda a pressões internas. Desde o início, a ala mais à esquerda do seu próprio partido criticou o apoio irrestrito do presidente a Tel Aviv. Inicialmente isolada, esse grupo cresceu com o tempo, conforme o escalonamento da crise humanitária, para incluir nomes mais moderados.
Para além da política partidária, a própria opinião pública nos EUA tornou-se mais crítica a Israel, o que é visível na cobertura da imprensa local do confronto e em pesquisas de opinião.
“A guerra expôs as tendências de mudança na relação especial entre EUA e Israel”, afirma Saltzman. “As pesquisas mostram que, se você é republicano, você tende a apoiar mais o Estado de Israel. Se você é democrata, menos. Isso significa que Israel se tornou uma questão partidária, o que não acontecia antes.”
A isso, o especialista acrescenta o recorte geracional –com consequências de longo prazo para a relação entre os países. “Esses jovens mais críticos a Israel hoje serão a cara da sociedade americana no futuro, que se tornará cada vez menos apegada ao Estado de Israel.”
Fonte: Folha de S. Paulo.