Os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao projeto de lei do marco temporal para demarcação de terras indígenas mantêm limites à atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal e podem favorecer o crime organizado. As consequências, apontadas por analistas, são a fragilização do combate ao narcotráfico dentro das terras indígenas e o aumento do risco de internacionalização de terras brasileiras na Amazônia.
Para a deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP), os vetos de Lula aos artigos 20 e 21 do Projeto de Lei do Marco Temporal trazem preocupação quanto à atuação das forças de segurança nas terras indígenas porque impedem a flexibilização da instalação de bases da polícia e do Exército em terras indígenas.
Segundo ela, há 185 terras indígenas situadas a até 150 quilômetros da fronteira do país e 34 delas estão exatamente na linha de fronteira. “É de conhecimento público que algumas aldeias indígenas em nosso território têm sido utilizadas como rotas pelo narcotráfico, sendo esta situação uma ameaça direta à nossa soberania e à segurança de nossas fronteiras”, afirmou a parlamentar do PL.
Hoje, a atuação das forças de segurança em terras indígenas é regida pelo Decreto 4.412/2002, criado no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Por meio desse decreto, as Forças Armadas e a Polícia Federal são obrigadas a encaminhar à Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional um plano de trabalho relativo à instalação de novas unidades militares e policiais em terras demarcadas.
A secretaria-executiva do Conselho de Defesa Nacional, por sua vez, pode solicitar manifestação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) acerca de eventuais impactos em relação às comunidades indígenas nas localidades que serão objeto das instalações militares ou policiais. Na prática, a decisão fica condicionada à aprovação pela Funai e pelo aval de Lula.
Apesar do decreto, unidades militares vêm sendo instaladas desde 2002 em reservas indígenas, inclusive durante o governo Lula, mas a instalação de algumas delas foi questionada pela Justiça.
O texto dos artigos 20 e 21 do projeto de lei do marco temporal assegurava a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, bem como a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em terras indígenas sem a necessidade do aval da Funai.
Um dos argumentos utilizados pelo governo federal para justificar os vetos no final de outubro deste ano foi justamente o fato de o texto aprovado pelo Congresso assegurar que a instalação de bases poderia voltar a ocorrer sem autorização da Funai. Para o Executivo, isso poderia gerar um “potencial restritivo ao usufruto exclusivo indígena nessas terras”.
“Em nenhum país do mundo isso existe. Uma comunidade indígena não pode vetar a atuação das Forças Armadas de cada país”, disse o advogado indígena Ubiratan Maia.
Instalação de fortes e bases na fronteira é parte de estratégia tradicional de povoamento
Segundo o general da reserva e analista de segurança, Marco Aurélio Vieira, as Forças Armadas e as polícias terem que pedir autorização da Funai para instalar bases em reservas indígenas representa uma inversão de valores que vigora ao menos a partir do decreto de 2002.
Segundo o general, desde o início da colonização, o Brasil usa a estratégia geopolítica de criar postos militares de fronteira e estimular o surgimento de vilas e cidades ao redor deles. “Desde a época do Marquês de Pombal, o Brasil adota a estratégia de defender povoando para depois povoar defendendo. Isso permaneceu no Império, na República e vem até os dias de hoje”, afirmou.
A versão atual dessa estratégia é criar os chamados Pelotões Especiais de Fronteira (PEF), bases militares no meio da selva para onde os militares se mudam com suas famílias e criam uma vila. Os indígenas da região costumam montar suas aldeias próximo a esses pelotões para ter acesso a recursos que chegam em aviões ou barcos. O objetivo dessas unidades militares não é apenas proteger a fronteira, mas, principalmente, dar o alarme sobre movimentações suspeitas e pedir reforços, caso seja necessário.
De acordo com Vieira, manter a gestão dessas áreas condicionadas somente às decisões da Funai é um problema grave, especialmente em regiões onde há reservas indígenas na fronteira do país, como no caso da reserva Raposa Serra do Sol. Ele afirmou que a Funai não tem um “olhar” de defesa e dificilmente vai perceber se contrabandistas e narcotraficantes se infiltrarem entre os indígenas para contrabandear drogas e armas.
“A Funai tem só o olhar social, não tem esse olhar policial, que é necessário. Se você não tiver vigilância na fronteira com olho de defesa, contrabando e tráfico humano passam pelas fronteiras. A Funai vai pensar que todas as pessoas em uma reserva são yanomamis, por exemplo, mas pode haver contrabandistas ou traficantes venezuelanos ou colombianos escondidos em meio a eles”, disse.
Rota de drogas que passa pela Amazônia cresceu a partir de 2016
As maiores facções criminosas brasileiras, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), operam rotas de tráfico de drogas que trazem cocaína produzida em países como Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela para o Brasil e depois as embarcam em navios cargueiros que seguem com destino à Europa.
A maioria dessas rotas do narcotráfico entrava no Brasil a partir do Paraguai pelas fronteiras do Paraná, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso e depois seguia por rodovias até portos em São Paulo, Paraná e Rio de Janeiro.
Mas, em 2016, o PCC assumiu sozinho o controle da rota do Paraguai ao assassinar o líder de quadrilha paraguaio Jorge Rafaat Toumani. O Comando Vermelho teve então que migrar parte de suas operações para o Norte e passou a explorar uma rota que transporta a cocaína andina principalmente por meio da Amazônia, na calha do Rio Solimões. A cocaína segue em embarcações ou é transportada por aviões de pequeno porte.
Algumas reservas indígenas coincidem geograficamente com a rota do tráfico e podem abrigar entrepostos para os barcos ou pistas de pouso clandestinas.
As forças de segurança brasileiras já possuem número limitado de bases e agentes para inspecionar as embarcações ou encontrar essas pistas clandestinas. Se a intenção do governo Lula com o veto for dificultar ainda mais as operações nas reservas indígenas com os vetos, o combate ao narcotráfico deve se tornar ainda mais difícil. Isso porque os narcotraficantes costumam se misturar aos indígenas e suborná-los para apoiarem as ações do tráfico.
O veto, que não colabora com o combate ao narcotráfico no Norte do país, ocorre em um momento em que o governo federal inicia uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Sudeste do Brasil. A operação posicionou militares em portos e aeroportos no Rio de Janeiro e em São Paulo para tentar apreender a cocaína no final da rota, quando ela está prestes a sair do Brasil em direção à Europa.
Em paralelo, o governo intensifica a Operação Ágata das Forças Armadas, que combate tráfico de drogas e armas nas fronteiras. Ela será focada no Paraná, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
Governo prioriza ações sociais em detrimento do combate ao crime
Em junho de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) lançou a “Estratégia Nacional para Mitigação e Reparação dos Impactos do Tráfico de Drogas sobre Territórios e Populações Indígenas”. Criada pela Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad), do MJSP, a estratégia tem como objetivo apoiar o enfrentamento de situações de vulnerabilidade social de povos e comunidades indígenas de todo o país e de povos e comunidades tradicionais da Amazônia Legal ameaçados pelo narcotráfico.
A estratégia inclui medidas para diminuir os problemas causados pelo narcotráfico em territórios indígenas, incluindo uso abusivo de álcool e drogas por parte da população indígena, encarceramento abusivo e a falta de acesso à Justiça.
Apesar de admitir a atuação do narcotráfico nas terras indígenas, não há foco em ações repressivas com a estratégia. De acordo com a secretária da Senad, Marta Machado, o objetivo é a redução de fatores associados.
“Para além de ações repressivas, é importante promover o acesso destas populações a oportunidades de geração de renda, além de serviços e benefícios que lhes garantam seu direito a uma vida digna e reduzam os fatores de risco associados à presença do narcotráfico em seus territórios”, afirmou.
Marta Machado afirmou que um edital foi lançado para destinar R$ 3 milhões para até 30 organizações para projetos de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) para combater os efeitos do narcotráfico nas comunidades indígenas. Mas só cinco entidades cumpriram os requisitos e poderão ter acesso aos recursos. O valor teto para as propostas é de R$ 250 mil e somente R$ 1,5 milhão deve ser empenhado. O próprio Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), órgão ao qual a Senad está vinculada, reconhece que o edital não atingiu seus objetivos.
Para além do fracasso nessa ação, que foi a mais destacada dentre as anunciadas pelo governo, para a deputada Silvia Waiãpi, a estratégia do governo está comprometida com os vetos no projeto do marco temporal. “A partir do veto presidencial no marco temporal, essa atuação de proteção ao território nacional não é uma prioridade”, afirmou a parlamentar.
Ministério da Defesa não se manifestou sobre vetos ao projeto do marco temporal
Embora tenha tratado de assuntos relacionados às Forças Armadas, que atuam sob a direção superior do Ministério da Defesa, o presidente da República deixou de ouvir o titular da pasta, o ministro José Múcio Monteiro Filho, ao decidir sobre os vetos ao projeto de lei do marco temporal.
Por outro lado, ao vetar 24 trechos do texto, entre artigos inteiros e em partes, Lula ouviu nove de seus ministros. Dentre os ministérios ouvidos estão o dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, da Justiça e Segurança Pública, dos Povos Indígenas, do Planejamento e Orçamento, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Turismo, a Casa Civil, além da Advocacia-Geral da União.
Diante da ausência de manifestação por parte do Ministério da Defesa, a deputada Silvia Waiãpi apresentou requerimento de informação, por meio do qual solicitou posicionamento da pasta sobre os vetos relacionados às Forças Armadas.
Na avaliação do advogado indígena Ubiratan Maia, os dispositivos vetados precisam ser derrubados. “São artigos extremamente benéficos para a questão da vigilância de fronteira. É necessário evitar esse tráfico de drogas e armas. A faixa de fronteira é uma região com alta concentração de terras indígenas”, disse Maia.
Eventuais restrições à instalação de bases podem favorecer internacionalização
O general da reserva Marco Aurélio Vieira afirmou que a derrubada dos artigos do projeto de lei do marco temporal que facilitariam a instalação de bases em reservas indígenas tem potencial para aumentar o risco de internacionalização de áreas demarcadas diante da pressão internacional.
“Nós, militares, somos sempre encarados como alarmistas quando falamos sobre a possibilidade de internacionalização de reservas indígenas. Mas os movimentos de guerra são imprevistos e rápidos, como vimos nas guerras na Ucrânia e em Israel. Dificilmente eles são detectados pela inteligência, porque são articulados gradativamente. Essa montagem está acontecendo há décadas e hoje ela é reforçada pela posição do presidente”, opinou o general.
A internacionalização de terras indígenas é a preocupação de que outros países possam pressionar o Brasil para ceder terras para a criação de nações indígenas na Amazônia. O maior exemplo é a região da reserva Raposa Serra do Sol, que fica na tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. Atualmente, há bases militares brasileiras na reserva, mas os militares consideram que ela é uma região vulnerável do país, pois a linha de fronteira está em território indígena e por isso poderia ser contestada internacionalmente.
Créditos: Gazeta do Povo.