Há uma configuração no seu telefone e no navegador da web que o Google está desesperado para impedir que você descubra. Quão desesperado? Somente em 2021, o Google pagou à Apple, à Samsung e a outras empresas US$ 26,3 bilhões para mantê-la oculta.
Isso é mais dinheiro por ano do que o McDonald’s ganha vendendo hambúrgueres.
Essa configuração afeta quem pode rastrear sua localização e observar o que você procura online. Ela afeta a utilidade das informações que você vê e quanto da sua tela é ocupada por anúncios.
Estou falando do seu mecanismo de pesquisa – o que aparece nas respostas quando você digita na barra de pesquisa. O Google paga aos fabricantes de telefones, laptops e navegadores para ser o seu padrão e para impedi-los de apresentar outras opções durante a configuração. São bilhões em troca de um favor.
A maioria das pessoas nunca pensou muito sobre a função de pesquisa em seus dispositivos, muito menos sobre como o Google chegou lá. Mas esse negócio padrão pode fazer com que você dê uma segunda olhada não apenas no Google, mas também na sua confiança na Apple, na Samsung e em outras empresas por terem lhe enganado.
O motivo pelo qual podemos abrir a cortina sobre o grande negócio das configurações padrão é o julgamento antitruste contra o Google em andamento em Washington, um dos maiores em décadas. Os EUA acusam o Google de usar ilegalmente pagamentos a fabricantes de telefones e outros para impedir que as pessoas experimentem alternativas como o DuckDuckGo, voltado para a privacidade, ou o Bing, da Microsoft. Esperamos um veredito no início do próximo ano.
Você pode estar se perguntando: E daí? O Google tem uma reputação de bons resultados, em parte porque possui dados de muitos usuários. O que há de tão ruim em tornar o Google o padrão?
O que estamos aprendendo com o teste vira essa questão de cabeça para baixo. Se o Google é tão bom, então por que ele precisa gastar tanto quanto todos os Big Macs juntos para garantir que nunca consideremos as alternativas? O que estamos perdendo enquanto o Google tem sido nosso padrão? E como saberíamos se surgisse algo melhor?
Eu, por exemplo, mudei meu mecanismo de pesquisa porque não acho que nenhum mecanismo de pesquisa possa ser o melhor sem as melhores práticas de privacidade. Mas mesmo que você não esteja interessado em romper com o Google, a escolha deve ser sua.
O poder dos padrões
As empresas de tecnologia sabem que você está muito ocupado para mexer nas configurações. Na verdade, elas estão contando com isso.
Estamos tendo uma visão privilegiada de como o Google explora essa ciência comportamental, às vezes chamada de “poder dos padrões”. A ideia é que os padrões podem influenciar as escolhas das pessoas de uma forma ou de outra, porque a maioria das pessoas está muito distraída ou confusa para alterá-los. Nossos aplicativos e dispositivos vêm repletos de configurações que beneficiam mais as empresas de tecnologia do que a nós – o “diabo está nos padrões”, escrevi em 2018.
Para obter o pagamento do Google, como aprendemos no julgamento, o Google exige que seus parceiros tornem o Google o padrão e também (quando permitido por lei) não nos dê uma escolha durante a configuração. Em alguns casos, as empresas também não podem nos incentivar ativamente a mudar. Isso é chamado de adicionar “atrito” às nossas escolhas.
Como o Google se defende fazendo isso? “Competimos arduamente por oportunidades promocionais para que as pessoas possam acessar facilmente o Google, e nossos pagamentos de compartilhamento de receita aumentaram ao longo do tempo porque as pessoas estão pesquisando mais com o Google”, disse a empresa em um comunicado.
O Google disse em suas declarações iniciais no julgamento que qualquer pessoa poderia mudar para um mecanismo de pesquisa diferente com apenas alguns toques. A empresa também publicou uma postagem em seu blog com essa afirmação.
Teste de conhecimento
Para testar essa afirmação, meu colega Tatum Hunter e eu fomos às ruas de São Francisco e pedimos a estranhos que nos mostrassem como alterar o mecanismo de busca padrão em seus telefones. Levamos um cronômetro para cronometrá-los.
Nenhuma surpresa: A maioria das pessoas não conseguiu mudar o mecanismo de busca em menos de dois minutos, se é que conseguiu. Muitos nem sequer entendiam que um mecanismo de busca é diferente de um navegador da Web (e que, teoricamente, você tem opções em ambos).
Em um iPhone, são necessários quatro toques e alguma rolagem, uma vez que você saiba onde procurar. Em alguns telefones Android, a alteração de um mecanismo de pesquisa requer mais de 10 toques, pois é necessário alterar uma configuração do navegador e também uma barra de pesquisa na tela inicial.
Nenhuma das confusões é culpa nossa — é literalmente o que o Google paga para fazer. Um documento interno do Google, revelado no julgamento, mostrou um motivo para a preocupação do Google: ele constatou que, quando as pessoas mudavam a página inicial do navegador para fora do Google, suas pesquisas no Google diminuíam em 27%.
Na Europa, que declarou o Google um monopólio em 2018, os fabricantes de telefones Android agora são obrigados a incluir uma opção de mecanismo de pesquisa durante a configuração. Lá, a participação de mercado do Google permaneceu praticamente a mesma; os concorrentes dizem que isso ocorre porque a tela de escolha é exibida apenas uma vez e também porque não fornece informações suficientes sobre as alternativas. Na Rússia, que também exige uma tela de escolha, a maioria das pessoas escolheu o rival local do Google, o Yandex.
Apple e Samsung pegam esse dinheiro
As empresas que recebem todo esse dinheiro do Google sabem exatamente o que está acontecendo. Pagamos aos fabricantes de gadgets para projetar os melhores produtos para nós, mas eles não estão trabalhando apenas para nós.
A Apple e a Samsung se recusaram a responder às minhas perguntas, mas temos depoimentos do julgamento que mostram como elas estão profundamente em conflito.
No depoimento, o vice-presidente sênior da Apple, Eddy Cue, disse: “Quando escolhemos os mecanismos de busca, escolhemos o melhor e permitimos que o cliente os troque facilmente. Portanto, não tenho nenhum problema com isso. Acho que estamos fazendo a coisa certa pelos clientes”.
Mas espere: eu pensei que a Apple tivesse feito da proteção da privacidade de seus clientes a pedra angular de sua proposta de valor… Os iPhones pedem aos usuários que tomem muitas decisões sobre privacidade, inclusive se querem dar aos aplicativos a capacidade de rastreá-los. Todo o modelo de negócios do Google consiste em rastrear pessoas e usar esses dados para direcioná-las ao marketing.
Um advogado do Departamento de Justiça perguntou a Cue, da Apple, se um mecanismo de busca poderia afetar a privacidade de um usuário. Cue respondeu com a frase do ano: “Sim, em algum nível, poderia, sim”.
Mas o engraçado é que os produtos da Apple não pedem aos clientes que façam nenhuma escolha de privacidade em relação ao mecanismo de pesquisa, que é o Google por padrão. Não nos pedir para escolher um mecanismo de pesquisa faz parte do acordo do Google com a Apple.
A Samsung também toma ativamente decisões de design que ajudam o Google e não a nós. Os advogados do Departamento de Justiça dos EUA sinalizaram um documento de 2018 que mostrava que a Samsung havia feito uma alteração em seu navegador da Web que reduzia o atrito para as pessoas que queriam mudar seu mecanismo de pesquisa. Mas então o Google enviou uma reclamação dizendo que isso era uma violação do acordo de pesquisa da Samsung com o Google. Depois disso, a Samsung excluiu essa alteração, aumentando o atrito.
Faça sua própria escolha
Diante de tudo isso, o que você deve fazer?
Entendo que o Google está para a pesquisa assim como o lenço de papel está para o espirro. Ele não teria chegado a esse ponto se seus resultados fossem terríveis.
Mas há motivos pelos quais o Google pode não merecer sua lealdade. No topo da minha lista: A coleta excessiva de dados do Google é assustadora e um risco em potencial para seus direitos civis. (Para um possível choque, verifique tudo o que ele armazena em sua página MyActivity). No início deste ano, descobri que, mesmo depois de o Google ter dito que excluiria alguns de seus dados para proteger a privacidade das pessoas que procuram atendimento para aborto, o Google não cumpriu sua promessa.
A falta de concorrência também está levando as páginas de resultados de pesquisa do Google a piorar, inundadas com anúncios e informações de seus próprios serviços. Para visualizar o declínio, comparei exatamente as mesmas pesquisas ao longo dos anos.
Mas depois de duas décadas de pesquisas no Google, muitas pessoas nem sequer sabem o suficiente sobre as alternativas para considerar a possibilidade de experimentar uma delas. Isso não é culpa sua. Talvez você tenha experimentado o Bing uma vez em 2015 e não tenha ficado satisfeito.
Para que fique registrado, há benefícios em algumas das alternativas muito menores. O Bing, agora reforçado com a tecnologia de inteligência artificial por trás do ChatGPT, também paga a você pela pesquisa. (Algumas semanas de pesquisas podem lhe render um cartão-presente de US$ 5).
Outra alternativa, chamada Ecosia, diz que usa sua receita de anúncios para plantar árvores.
Mudei para o DuckDuckGo, um mecanismo de pesquisa voltado para a privacidade. Ele não rastreia o que você pesquisa e onde você vai. Como eu o utilizo, menos anúncios assustadores me seguem pela Web.
Não gosta de nenhum desses? Fique com o Google. Só acho que é melhor para nós quando o Google tem que competir pelos méritos, em vez de comprar nossos padrões.
O maior preço que pagamos pelos monopólios é que eles limitam ideias melhores de maneiras que nunca conheceremos. / TRADUÇÃO POR GUILHERME GUERRA
Estadão