A guerra equivocada do jornalismo contra as Notas da Comunidade é ruim para a imprensa e prova a necessidade de mecanismos como esse criado pelo Twitter.
O mecanismo foi lançado oficialmente em 2021 —portanto, antes da era Elon Musk— e implementado gradualmente seguindo o plano original. Hoje, ele funciona como uma nota que adiciona contexto ou corrige informações de postagens.
Desde o último final de semana, há uma verdadeira guerra de jornalistas contra o tal sistema. Obviamente é passível de críticas, mas não se trata disso: o problema foi inventar coisas que não existem.
A primeira delas é que seria obra de Elon Musk. Não é. A segunda é que seria uma checagem de fatos substituindo moderadores. Também não é.
Para além das discordâncias com os fatos, há uma evidente dificuldade de raciocínio lógico. Se imagina que o sistema poderia funcionar à semelhança das redes de fake news. Ocorre que ele exige inscrição e tem um algoritmo para usar a polarização como equilíbrio de opiniões. O código desse algoritmo estava aberto na internet para escrutínio antes mesmo do lançamento da ferramenta.
A lógica de funcionamento é na mentalidade cripto. Se trata de algo na mesma lógica de produção coletiva de conhecimento utilizada pela Wikipedia.
Há aqui uma disputa de poder, a de quem teria o condão de determinar a verdade. Vivemos tempos em que as pessoas não têm vergonha de demonstrar o quanto são infantilizadas. Há os que chegam ao absurdo de defender publicamente a criminalização da mentira. Seria cômico se não fosse trágico.
Nessa lógica, jornalistas e agências de checagem deveriam, como especialistas, ter o condão de determinar o que é verdade. Há uma lógica muito próxima dessa e muito famosa por aí no mundo, a de que o governo determina o que é a verdade e o jornalista repete. No mundo adulto, tudo isso é delírio.
Uma reportagem no final de semana elencou quatro notas da comunidade que aparentemente teriam problemas de checagem ou mostrariam uso político da ferramenta. As quatro estavam corretas. Custava achar uma com problema e usar?
Além disso, o jornal coloca no título que as Notas da Comunidade são um desafio para o TSE nas eleições de 2024. O Tribunal Superior Eleitoral jamais se pronunciou sobre o tema. Ninguém entendeu por que não foram problema nas eleições de 2022, muito mais acirradas, mas serão agora. Também não há explicações.
Existe um raciocínio tão imbecil quanto popular de que seres humanos avaliam o conteúdo e aceitam desmentidos apenas pela análise de fatos. Não funciona assim, o interlocutor é importantíssimo para gerar abertura para ouvir ou fechar nossos ouvidos.
Por isso agências de checagem não são aceitas por pessoas que já desconfiam do jornalismo: o emissor não muda. O Notas da Comunidade vence essa barreira porque as pessoas não conhecem o emissor, mas se identificam com ele, como se fizessem parte do grupo. Isso significa que estão abertas a dar atenção ao conteúdo.
Já há duas experiências antigas e que precedem agências de checagem com muito sucesso. São os sites Boatos.org e E-farsas, famosíssimos naquelas épocas de correntes de e-mail. Eles são atualizados nas principais conversas dos usuários e falam de tudo, não apenas de política ou temas nacionais. O que estiver bombando nas redes irá parar ali, inclusive golpes famosos no momento. Nunca tiveram rejeição por isso, são “gente como a gente” para a maioria do público.
Atualmente, 200 mil pessoas de 44 países foram aprovadas para fazer parte do sistema Notas da Comunidade. Não basta criar um perfil. É preciso ter pelo menos seis meses ativo, jamais ter infringido as regras do Twitter e fornecer à empresa um telefone válido, pelo qual sua identidade real será confirmada.
Essa identidade não é revelada para o grupo; cada um tem um pseudônimo. Primeiramente, a pessoa avalia as notas de acordo com parâmetros de acuidade, boas fontes e adequação da linguagem, que não pode ser ofensiva nem tendenciosa. Dependendo de como se sair nessa atividade, a pessoa passa a poder escrever suas próprias notas, submetidas ao grupo.
Eu conheço pessoas que fazem parte do sistema e têm críticas, veem formas de torná-lo mais transparente e impedir a gamificação de opiniões. Até elas consideram que as manifestações da imprensa nos últimos dias estão mais para galhofa do que para crítica.
Eu estou rezando para que seja simplesmente má-fé, que não seja um engano honesto. Prefiro conviver com isso. Se realmente a imprensa está tão desconectada da realidade e dá lugar a raciocínios com tamanha precariedade lógica e cognitiva, o gato subiu no telhado.
O Antagonista/Madeleine Lacsko