Existe jornalismo neutro? Não. As palavras que usamos, a ordem das frases, os adjetivos que escolhemos, tudo faz com que a realidade seja mostrada como queremos que seja. Eu e todos os jornalistas do mundo fazemos isso.
Outra coisa bem diferente é escrever como linha auxiliar de um projeto de poder. Hoje, boa parte da imprensa do Brasil está transformada num grande órgão oficial do governo. Stalin tinha seu Pravda. Fidel Castro tinha seu Granma. Mao Tsé-Tung tinha o Diário do Povo. Luiz Inácio Lula da Silva, aparentemente, é mais poderoso do que todos eles juntos. Quase toda a “grande” imprensa brasileira hoje apoia o governo. O maior exemplo é o icônico Jornal Nacional, da Globo, atualmente mais governista que o Minju Choson, o órgão oficial do regime da Coreia do Norte.
Não é só uma questão de ideologia implantada desde as escolas e garantida pelo recrutamento seletivo dos profissionais. Na semana passada ficamos sabendo que, durante o governo Lula, a verba publicitária oficial destinada à Rede Globo chegou a R$ 66,1 milhões. O que correspondeu a 62,5% das verbas federais destinadas às emissoras de TV do país. A consolidação da Rede Globo como emissora “oficial” do governo Lula foi detalhada na matéria “O novo departamento de propaganda do PT”, do editor Edilson Salgueiro, para a Revista Oeste.
O Brasil nunca viveu uma época em que praticamente toda a imprensa esteve de um lado só (com raras exceções, como Oeste). Nem vem ao caso que lado seja esse. Um país sem debate de ideias é um país sem oxigênio. Quando existe uma versão única para tudo, perdemos o senso de realidade e viramos um filme distópico. Foi o que vimos com a cobertura da surpreendente vitória de Javier Milei para a Presidência da Argentina.
‘À beira do descontrole’
A “grande” imprensa brasileira nunca teve dúvida de que o candidato certo a apoiar era o ministro da Fazenda, Sergio Massa. Afinal, ele representa tudo o que o petismo propõe: estatização, burocracia, inchaço da máquina pública, controle progressivo da liberdade, uso dos sindicatos como armas, ligações íntimas com ditaduras espalhadas pelo mundo. Se o Lula apoia, deve estar no caminho certo. E, se está no caminho certo, é preciso destruir o candidato adversário, esse cara de penteado esquisito chamado Javier Milei.
Aqui vão dois exemplos de como tem funcionado a imprensa brasileira. No dia 13 de novembro, a seis dias da eleição, a jornalista Sandra Cohen publicou no site G1 (da Rede Globo) uma matéria com o título “Massa inverteu os papéis e desconstruiu Milei no debate argentino”. O subtítulo: “O ministro da Economia, que representa um governo desgastado, pôs o candidato da oposição na defensiva, deixando-o sem resposta a suas controversas propostas”.
Em seguida, Sandra praticamente tornou a eleição desnecessária: “Se um debate eleitoral fosse decisivo para o resultado das urnas, o peronista Sergio Massa sairia vencedor no segundo turno das eleições argentinas, no próximo domingo (19). No último confronto televisivo desta campanha, o atual ministro da Economia pôs o outsider ultraliberal de direita Javier Milei na defensiva, com perguntas incisivas sobre as suas propostas mais polêmicas. Deu certo. O que se viu foi um candidato hesitante, que repetia frases feitas, à beira do descontrole. Exposto por Massa como se estivesse numa sabatina, Milei não conseguiu explicar como vai extinguir o Banco Central, dolarizar a economia argentina ou tarifar a educação pública”.
Segundo a jornalista, o peronista Sergio Massa, atual ministro da Economia, arrasou o adversário que “não soube defender suas propostas mais polêmicas”. E mais: “O ministro da Economia não precisou defender os péssimos indicadores econômicos da Argentina. Ao contrário, aproveitou-se do formato do debate para questionar as soluções mágicas propostas por seu adversário. Emparedado, restou a Milei chamar Massa de mentiroso e acusá-lo de fazer parte de um governo de criminosos”.
Quatro em cada dez
Essa redação faz a sutil mágica de desligar o ministro Sergio Massa dos “péssimos indicadores econômicos da Argentina”. Esses péssimos indicadores foram assim resumidos por John Cassidy, da revista New Yorker: “Desde 2000, descumpriu o pagamento de sua dívida soberana em três ocasiões (…) A economia entrou em recessão e a taxa de inflação atingiu 142,7 por cento. Quatro em cada dez argentinos vivem na pobreza e, nos últimos quatro anos, o valor do peso argentino caiu mais de noventa por cento em relação ao dólar americano”.
Para Sandra Cohen, Sergio Massa se “desligou” dessa descrição de inferno econômico. Ela não pensou em dizer que Massa é o responsável direto por toda essa desgraça, como membro do governo esquerdista de Alberto Fernández. No seu artigo, Massa surge como o grande vencedor de um debate contra um adversário desconstruído, despreparado, amador, sem resposta, “outsider ultraliberal de direita”, hesitante, “à beira do descontrole”. Como você já sabe, o despreparado à beira do descontrole ganhou a eleição com 11 pontos porcentuais de vantagem.
Mas Sandra Cohen mantém uma postura de jornalista “neutra”; apenas usa as palavras para distorcer a realidade. Outros profissionais da imprensa não disfarçam mais.
Trio do balacobaco
Para Eliane Cantanhêde, colunista do jornal O Estado de S. Paulo, o futuro da Argentina está determinado no título de sua matéria: “Perigo concreto para a Argentina, Milei forma com Trump e Bolsonaro o trio da antidemocracia”. E em seguida toca as trombetas do apocalipse: “Vitória de anarcocapitalista na Argentina coloca em jogo as relações bilaterais, a sobrevivência do Mercosul, o acordo com a União Europeia e as negociações com o resto do mundo”.
Cantanhêde usa a motosserra usada por Milei para simbolizar os cortes no Estado inchado para inventar outro significado: “Ambiente, clima, florestas, essas ‘bobagens’ que a extrema direita detesta, ou despreza, como ‘coisa de comunista’”. Ela reconhece que o governo petista se “embolou” ao mandar seus marqueteiros para apoiar Sergio Massa. E prevê mais apocalipse: “O peronismo perdeu, Lula e o Brasil perderam juntos. Mas houve quem ganhasse: Jair Bolsonaro, amigão de Donald Trump e agora de Milei, formando um trio do balacobaco contra a democracia”.
Sim, você leu certo: segundo Eliane Cantanhêde, o Brasil saiu perdendo com a derrota desse museu corrompido de ideias chamado peronismo, um devorador insaciável de nossos empréstimos. Ela chega a criticar a primeira-dama Janja por divulgar uma estúpida charge envolvendo as personagens de quadrinhos Mônica e Mafalda. Mas isso passa batido na sua visão de futuro.
“É assim que, além de ser uma real ameaça política, econômica e social para uma Argentina já tão combalida, Javier Milei joga seu país contra o Brasil, traz o fantasma da extrema direita de volta e dá a Lula um problemaço para o presente e uma ameaça para o futuro. Com a vitória do absurdo Milei na Argentina, a dianteira do absurdo Trump nos EUA e o Brasil dividido ao meio, como ficam o absurdo Bolsonaro e o bolsonarismo?”
O ‘trio da antidemocracia’
Cinco perguntas a Eliane Cantanhêde:
- Por que Javier Milei é “uma real ameaça política, econômica e social para uma Argentina já tão combalida” e o governo peronista, que destruiu o país, não é uma real ameaça?
- Por que Javier Milei jogou “seu país contra” o Brasil, quando foi Lula quem interferiu na eleição argentina?
- O que é o “fantasma da extrema direita”, que estaria de volta? O que é a extrema direita? Por que não fala da extrema esquerda, que ocupa altos cargos no governo brasileiro, como o Ministério da Justiça?
- Por que Javier Milei, Donald Trump e Jair Bolsonaro são “absurdos”? O que significa esse adjetivo partindo de uma profissional de imprensa que deveria ser analítica e clara? “Absurdo” se refere a todos os que não concordam com as ideias e práticas que destruíram a Argentina?
- Por que Milei, Trump e Bolsonaro são o “trio da antidemocracia”, quando os peronistas e os petistas são os apoiadores de ditaduras como as da Venezuela, Cuba, China, Rússia e Irã? O que diz do regime de exceção imposto pelos nossos progressistas juízes do Supremo Tribunal Federal? Isso é pró-democracia?
O que é democracia?
Cantanhêde e Cohen estão aqui apenas como dois exemplos do nível de superficialidade militante a que desceu a maior parte da imprensa brasileira. A matéria de John Cassidy para a New Yorker — uma publicação claramente de esquerda — analisa ponto a ponto, por exemplo, os prós e os contras da possibilidade de dolarizar a economia argentina. Já na imprensa brasileira, temos ofensas e maldições como base de análise.
Nosso jornalismo está afundado numa de suas piores fases, e não vai ser fácil recuperar sua credibilidade. Mas é bom deixar claro: aqui ninguém quer qualquer tipo de regulação, controle ou censura. Democracia é a defesa da liberdade de opinião para mesmo para Eliane Cantanhêde e todos os jornalistas que se entregaram à militância política.
O grande problema é considerar que o que está acontecendo por aqui é normal. Quem pensa assim é Vladimir Putin, que distribui a fortuna que arranca do aparelho estatal russo para sustentar uma imprensa cada vez mais subserviente. Aqui não é a Rússia de Putin. Ou pelo menos não deveria ser.
Fonte: Revista Oeste.