Depois de passar 35 anos da vida cortando cana para usina em Alagoas, João Vicente da Silva, 47, finalmente deixou o trabalho braçal este ano. Mas, não, ele não se aposentou: a vida da família mudou porque o filho Mauricio Bernardo da Silva, 23, se formou em medicina, arrumou empregos e tirou o pai da dura rotina dos chamados “boias-frias”.
Maurício se formou no último dia 11 após seis anos de estudos na Ufal (Universidade Federal de Alagoas) de Arapiraca, no agreste alagoano. Ele e a família sempre viveram em uma casa humilde no bairro do Cruzeiro, no município de São Sebastião (126 km de Maceió).
Antes de se formar, ainda no final de julho, ele recebeu o diploma e se registrou no CFM (Conselho Federal de Medicina) para atuar profissionalmente.
Hoje, trabalha em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) no município onde mora e dá plantões semanais nas cidades de Arapiraca e São Miguel dos Campos.
Retribuição aos pais
Ajudar os pais sempre foi o maior desejo de Maurício, que entende a missão como uma “retribuição” pelo apoio durante toda vida de estudos.
“Desde que entrei na faculdade eu carrego uma lista de prioridades. Agora [depois do pai deixar o corte de cana], a primeira é colocar eles em um lugar melhor, estamos procurando uma casa maior. Depois vou comprar um carro. Só quando deixar tudo bem ajeitadinho para eles é que vou partir para minha especialização e outras coisas pessoais” (Maurício Bernardo).
A história escolar de Maurício, contam seus pais, sempre foi de um aluno exemplar. No entanto, antes de ele nascer, sua mãe acreditava que ele seria um médico. Mais que uma crença, era um sonho por conta de uma marca dolorosa que os pais de Maurício passaram, a perda de um filho.
“Desde que eu estava com ele na barriga, dizia para mim mesma que carregava um doutor. Não falava para ninguém, mas tinha esse sonho porque ele foi o meu segundo filho; o primeiro faleceu em uma cirurgia em Maceió quando tinha 2 anos e 6 meses. Ele morreu, e eu estava do lado dele” (Adriana da Silva, 43, mãe de Bernardo).
Maurício nasceu, foi crescendo e logo se destacou no seu primeiro ano de pré-escola. “Quando ele tinha 5 anos, a professora me chamou para perguntar onde Maurício tinha estudado, porque ele já sabia escrever. Mas era a primeira vez que ele estudava na vida.”
Dona de casa, ela lembra que viu o talento do filho ter sucesso escolar à medida que ele crescia, mas a família não tinha condições financeiras de pagar por uma escola ou mesmo um curso particular.
“Eu comprava para ele aqueles cadernos baratos, e veja hoje: ele virou um médico. Todo professor elogiava ele. A diretora aqui no 9º ano chamou e disse: esse menino pode ser o que ele quiser, ele deve estudar em Arapiraca” (Adriana da Silva).
Essa diretora, lembra, conseguiu uma bolsa de 50% do valor da mensalidade em uma escola particular de Arapiraca, e disse que custearia a outra metade para ele estudar em um colégio melhor.
A família agradeceu, mas preferiu recusar porque preferia que ele seguisse em uma escola pública, sem depender da ajuda de outras pessoas.
“Aí eu fui para o [colégio] Lions [Em Arapiraca], que apesar de ser uma escola pública, era melhor que as que tinham aqui” (Maurício Bernardo)
Dificuldades e preconceito
Mesmo com as boas notas, conta que ele e e os pais se acostumaram a ouvir frases do tipo: ‘vai ser difícil se formar por ser cortador de cana”; “esse é um curso para filho de rico.” Isso vinha de pessoas conhecidas e até de familiares, que desacreditaram da formatura. Entretanto, nada disso o abalava.
“A gente já passou por muita dificuldade ao longo da vida, mas por falta de dinheiro. Como estudei em escola pública sempre foi muito tranquilo, e na faculdade também. Mas o que está claro na minha mente é que meus pais foram tudo para mim: acreditaram, nunca desistiram do sonho e fizeram o que puderam para que eu chegasse a faculdade” (Maurício Bernardo).
“Eu ainda estou pensando, está tudo muito recente e em aberto; estou me encantando muito com cirurgia vascular, ainda não é certo” (Maurício Bernardo)
Por falar em trabalho… O pai Vicente não esconde o orgulho imenso de onde o filho chegou, mas avisa: apesar de deixar o serviço de cortador de cana, pretende trabalhar.
“Não sei estar parado, quero fazer bico com qualquer serviço braçal. O que der para fazer, eu faço. Mas por enquanto estou só descansando” (João Vicente).
Ele afirma ainda que, apesar das dificuldades de uma profissão tão desgastante, tem orgulho do que conseguiu construir na vida como cortador de cana.
“Foi graças a esse serviço que arrumei o que comer para mim e para meus filhos. Comecei nisso tinha ainda 14 anos e sempre fiz tudo com amor pela família” (João Vicente).
Além de Maurício, Vicente e Adriana tem outro filho, de 22 anos, que também enveredou para a área de saúde e faz curso de técnico de enfermagem em Arapiraca.
Fonte: UOL.