Desde o início da guerra declarada de Israel contra o Hamas, o Irã tem se posicionado fortemente contra a ação defensiva israelense, chamada pelo regime de “agressão do Estado judeu contra os palestinos”.
A primeira manifestação surgiu três dias depois do ataque surpresa perpetrado pelo grupo terrorista, ocasião na qual o líder supremo do país persa, Ali Khamenei, afirmou estar orgulhoso da incursão da “juventude palestina”. Apesar disso, ele negou qualquer envolvimento nas hostilidades, mesmo sendo de conhecimento público que o Irã é o principal financiador da milícia atuante na Faixa de Gaza.
Novamente nesta semana, a diplomacia iraniana se posicionou sobre o conflito, pedindo que os países islâmicos impusessem um boicote a Israel, com a expulsão de diplomatas e um embargo à venda de petróleo ao país. O anúncio foi feito pelo ministro das Relações Exteriores, Hossein Amir-Abdollahian.
Em sua fala, o diplomata alertou que “o tempo está se esgotando para uma solução política entre os lados”, ameaçando a entrada do chamado “Eixo da Resistência” no combate com “ações preventivas”, caso os “crimes de guerra contra os palestinos não sejam cessados”.
As declarações surgem em um momento de possível escalada do conflito, diante da iminente entrada terrestre das Forças de Defesa Israelenses (FDI) em Gaza e dos ataques iniciados pelo Hezbollah pela fronteira norte de Israel com o Líbano.
Nesta sexta-feira (20), o governo israelense iniciou a evacuação dos residentes de Kiryat Shmona, uma cidade próxima da fronteira com o território libanês.
O que é o Eixo da Resistência?
O Eixo da Resistência é uma aliança não-oficial de influência, liderada pelo Irã, na qual participam grupos declaradamente contrários aos EUA e Israel no Oriente Médio.
A grande maioria dos aliados são milícias xiitas como o grupo libanês Hezbollah, os Houthis no Iêmen, a Jihad Islâmica em Gaza, além de outras associações no Iraque, Afeganistão e Paquistão. Apesar de também ser listado no eixo, o Hamas surgiu de um movimento sunita.
Em entrevista à emissora britânica BBC, a diretora do Middle East Institute, Lina Khatib, explicou que essa influência foi construída a partir de uma série de conflitos na região, como as guerras civis na Síria e no Iêmen, bem como nas disputas do Estado Islâmico no Iraque.
Segundo ela, essas milícias são financiadas pelo Irã para “promover os objetivos políticos do regime” nos países onde estão sediadas e em um plano regional.
O idealizador dessa rede de influência foi Qasem Soleimani, ex-comandante da Força Quds, uma divisão importante da Guarda Revolucionária do Irã.
Essa unidade de elite é responsável pelas ações militares das forças iranianas fora do país. Por meio da Quds, o governo de Teerã realiza parcerias com grupos e milícias em outros países islâmicos, financiando treinamentos militares, bem como ofertando munições e armas para os ataques terroristas que visam a derrubada de governos e tomada de território não reconhecidos pelos rebeldes.
Isso aconteceu na guerra civil da Síria, em 2011, ocasião na qual o Irã enviou soldados ao país em apoio ao presidente Bashar al-Assad contra a revolta armada instaurada no território. Na ocasião, milhares de militantes xiitas foram armados para defender o governo aliado de Teerã.
Assim que assumiu a Quds, em 1998, Soleimani teve como principal objetivo ampliar a influência do Irã no Oriente Médio, em busca da formação de uma liderança iraniana na região. Para isso, aliciou grupos rebeldes com pensamentos radicais próximos do regime xiita e que fossem leais a sua autoridade.
Nesse contexto, acredita-se que tenha surgido o financiamento de grupos terroristas como o Hezbollah, no Líbano, e o Hamas, em Gaza.
Outro exemplo aconteceu no Iraque, onde a ação do regime iraniano foi projetada para derrotar o Estado Islâmico. O primeiro projeto do eixo da resistência, idealizado por Soleimani, armou e preparou as Forças de Mobilização Popular (FMP) para derrotar o ISIS, que perdeu muita força nos últimos anos, mas continua a realizar ataques esporádicos, principalmente na Europa e África.
O grupo terrorista Boko Haram é um dos braços do Estado Islâmico na Nigéria, país tomado pela violência, principalmente contra cristãos, que são sequestrados e mortos após invasões em comunidades locais.
Em 2019, o governo americano classificou a Guarda Revolucionária do Irã e a Força Quds como organizações terroristas estrangeiras.
Soleimani foi morto pelos EUA em 2020 após ser atingindo em um ataque aéreo enquanto saía do aeroporto de Bagdá, capital do Iraque. O episódio aconteceu durante o governo de Donald Trump.
Apesar da morte do idealizador, o Eixo da Resistência continua a atuar no Oriente Médio e é uma ameaça ativa na guerra Israel-Hamas.
Uma das provas disso foi a visita do presidente dos EUA, Joe Biden, a Israel, nesta quarta-feira (18).
O país enviou dois grupos de porta-aviões para o Mediterrâneo Oriental, posicionados próximos ao Irã, com o objetivo de “mandar uma mensagem” ao país, caso este decida se envolver diretamente no conflito ou enviar algum aliado, como o vizinho do território israelense, o Hezbollah.
A milícia libanesa Hezbollah
O Hezbollah é uma milícia xiita criada na década de 1980 durante a guerra civil do Líbano, um conflito marcado pela disputa territorial entre cristãos e muçulmanos no país.
Em árabe, o nome do grupo significa “Partido de Deus”. Entre seus objetivos, assim como o Hamas, está a destruição do Estado judeu.
No Líbano, ele atua em duas frentes: como um partido político xiita, com poder de veto no Executivo, e um grupo paramilitar financiado pelo Irã, que mantém popularidade entre a parcela da população libanesa xiita. A grande liderança do Hezbollah é Hassan Nasrallah.
Oficialmente, a milícia surgiu em 1985 após a publicação de uma “carta aberta”, na qual declarava que as duas potências do mundo à época, EUA e União Soviética (URSS), eram seus principais inimigos. O documento divulgado pelo grupo também coloca o Estado judeu como alvo de destruição.
Um novo manifesto foi elaborado em 2009, assim que a organização conquistou 10 cadeiras no Parlamento do Líbano. Diferentemente do documento antigo, o Hezbollah desistiu de defender a criação de uma república islâmica, no entanto manteve a “linha-dura” frente a Israel e os EUA.
O grupo é classificado como uma organização terrorista pelos EUA, Israel, União Europeia e alguns países da Liga Árabe.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o brasileiro Gabriel Schorr, que foi soldado nas Forças de Defesa israelenses por 23 anos e já atuou em missões dentro de Gaza três vezes, disse que o Hezbollah é o único grupo terrorista classificado por Israel como um exército.
“A milícia é considerada ‘a filha preferida’ do Irã. É um grupo mais preparado e que possui mais contingente do que o Hamas. É a única organização considerada um exército terrorista pela Defesa de Israel. Eles possuem veículos blindados, drones que são muito usados pelos russos na guerra contra a Ucrânia, e um preparo e financiamento maior do que o Hamas, em Gaza”, afirmou.
O ex-soldado da FDI explica que a grande parcela de grupos terroristas islâmicos foi criado pelo regime iraniano. “Temos diversos grupo patrocinados pelo Irã no Oriente Médio. O Hezbollah, como o principal deles, é a ‘frente iraniana na fronteira com Israel’. Sabemos que os soldados e os foguetes iranianos, caso fossem lançados de Teerã, não teriam alcance até Israel, então houve um investimento no Líbano para a formação da milícia aliada, como se o território vizinho fosse o Irã ao lado do Estado de Israel”.
Com os ataques já iniciados pela milícia libanesa contra o território israelense, poucos dias depois do ataque do Hamas, e a iminente entrada do Exército de Israel em Gaza, há uma possibilidade de que o Hezbollah entre diretamente no conflito.
“Com a possível escalada do conflito, assim que Israel entrar por terra na Faixa de Gaza, as chances do Hezbollah intervir são grandes, mas não de imediato. Os terroristas devem esperar alguns dias, cerca de dez, pensando em uma estratégia de ataque, já que os soldados israelenses estarão mais cansados e são previstas baixas militares”.
O especialista destaca que o grupo também deve aguardar certos resultados antes da intervenção. “Caso percebam que seja o fim, uma derrota do Hamas, eles vão lançar foguetes em Israel, provocar um terror no país”, afirmou.
Schorr não acredita em uma intervenção direta dos EUA na guerra. No entanto, o envio de porta-aviões para o Mar Vermelho, em frente ao Irã, é uma estratégia do Estado americano para “comunicar” ao regime iraniano a presença de aliados do lado israelense.
“Biden enviou dois porta-aviões para a região. Isso mostra que há presença militar americana ao lado de Israel, com esperança de pressionar o Irã e evitar um ataque do Hezbollah. Não tenho certeza se isso funciona, você não consegue falar inglês no mundo árabe”, disse.
Como a guerra pode escalar?
Para o ex-combatente brasileiro, há três principais projeções para a escalada da guerra. Na primeira hipótese, Israel entra em Gaza, com o objetivo de destruir o Hamas e sua influência na região, sem que o Hezbollah crie outra frente de guerra. “Nas vezes em que lutei em Gaza, o objetivo nunca foi acabar com o Hamas, mas sim reduzir as ações terroristas na região, nunca houve uma missão com esse objetivo, até o momento, porque havia esperança do grupo que controla Gaza abrir espaço para um diálogo futuro”.
Segundo ele, essa missão duraria meses e necessitaria do preparo tanto de militares quanto de civis, na evacuação para abrigos. “Há um interesse duplo nessa hipótese: evitar ao máximo ter contato com inocentes e ter liberdade de atingir os locais estratégicos do Hamas”.
Em uma segunda projeção, Israel se defenderia da milícia libanesa na fronteira norte. Schorr se refere ao Hezbollah como “a próxima guerra” que o país enfrentará.
“Nós temos conhecimento dos centros de treinamento e arsenal do Hezbollah. Nessa possibilidade, o Exército israelense poderia tirar uma vantagem bélica, não sei dizer se os caças americanos participariam oficialmente do combate. Acho que os EUA agiriam no fornecimento de munição, informação, equipamentos, interceptação, mas nada diretamente”.
Já a terceira opção apresentada por Schorr é a escalada mundial do conflito, provocando uma Terceira Guerra Mundial, onde todas as potências entram na disputa.
“Nessa hipótese, o Irã instigaria suas alianças informais com milícias terroristas na Síria, no Iêmen, e outras partes do Oriente Médio a cometerem atentados contra embaixadas israelenses e americana, o que já vemos acontecendo, e a matar judeus. Espero que não chegue a isso, alguns chamariam essa nova escalada de terceira guerra mundial. Essas ações mobilizariam líderes ocidentais para cá. Todos sabem que o limite entre essas três opções é muito fino”, disse o especialista.
O ex-soldado destaca que não vê uma revolta oficial de países islâmicos contra Israel. “Acredito que os países não se juntariam ao conflito, oficialmente, mas a ação ocorreria por meio dessas formações aliadas independentes, lideradas pelo Irã”.
Créditos: Gazeta do Povo.