O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no fim de agosto que as guardas municipais integram o sistema de segurança pública do Brasil. Na avaliação de parte dos juristas, esse entendimento do Supremo reconhece que prisões e outras ações de polícia praticadas pelas guardas são legais. Para outros especialistas, a decisão não muda o alcance da atuação das guardas.
Uma das autoras da ação, a Associação das Guardas Municipais do Brasil (AGM Brasil) diz que a decisão dá mais segurança para prefeitos investirem nas guardas. No País, cerca de 1.250 municípios têm guardas constituídas, com efetivo de 130 mil agentes, segundo a entidade. A regra definia que os guardas não poderiam exercer atribuições das polícias civil e militar, como abordar pessoas na rua de forma aleatória e fazer revistas pessoais. Prisões e apreensões de drogas feitas pelos guardas , por exemplo, acabavam derrubadas na Justiça.
O processo contestava as decisões judiciais, incluindo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que não reconheciam a categoria como parte do sistema de segurança. “Entramos com a ação para que ficasse claro que somos parte desse sistema”, diz o vice-presidente da associação, Ramon Rodrigues Soares. A ação no Supremo foi julgada procedente por 6 votos a 5 – o voto de desempate foi dado pelo novo ministro, Cristiano Zanin.
Em 2022, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia reforçado o entendimento de que a guarda municipal, por não estar entre os órgãos de segurança pública previstos na Constituição, não poderia exercer atribuições das polícias civis e militares, se limitando à proteção de bens, serviços e instalações do município. O colegiado considerou que só em situações excepcionais a guarda poderia realizar a abordagem e a busca pessoal. Na ocasião, foram declaradas ilícitas provas colhidas em busca pessoal pelos guardas em patrulhamento de rotina.
Para o jurista Fábio Tavares Sobreira, professor de Direito Constitucional, mudou o alcance da atuação da guarda. “A questão nuclear é que as guardas poderão, a partir da decisão do STF, que já está valendo, realizar comandos, revistar os cidadãos em casos de fundadas suspeitas, cumprir mandados de prisão se tiverem acesso a eles e realizar buscas domiciliares”, afirma.
“Havia toda uma discussão se as prisões eram legítimas sob o ponto de vista constitucional e processual, ou se eram ilegítimas. O Supremo decidiu que guardas municipais podem exercer essas funções e, consequentemente, os atos de polícia praticados por elas são legais”, diz Acácio Miranda, doutor em Direito Constitucional.
O vice-presidente da AGM diz que a decisão não muda, na prática, a atuação da categoria, que já dá apoio ao policiamento. “Vai dar mais segurança jurídica para a criação de novas guardas e pode garantir mais investimentos das prefeituras”, afirma.
“Isso porque facilita aos prefeitos o acesso ao Fundo Nacional de Segurança do governo federal para equipar as guardas”, afirma Ramon Rodrigues Soares. Procurado pela reportagem, o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Para o jurista Antonio Carlos de Freitas Junior, por outro lado, é um equívoco o entendimento de entidades que congregam as guardas municipais de que a decisão equiparou as guardas PM. “A função da guarda continua a mesma de proteger os bens públicos do município. Isso não mudou”, diz ele, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP)
Na prática, segundo ele, a decisão torna mais fácil os convênios de integração das guardas com outras corporações, bem como o custeio de equipamentos, possibilitando ainda que uma força possa colaborar com a outra. “Mas as guardas municipais e metropolitanas não assumiram o papel de polícia ostensiva, como a Polícia Militar tem, muito menos de polícia judiciária, como tem a Polícia Civil.”
STF liberou porte de arma em julgamento anterior
Procurada pela reportagem, a assessoria do STF disse que todas as informações estão disponíveis no julgamento da ação. O relator, ministro Alexandre de Moraes, citou dados da Coordenadoria de Análise e Planejamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, informando que 286 municípios tiveram, em 2016, ocorrências policiais apresentadas por guardas municipais na Polícia Civil. Na média de 2016 e 2017, 8% de todas as ocorrências policiais do Estado foram apresentadas pelas guardas municipais, apesar de estarem presentes em só um terço dos 645 municípios paulistas.
Ainda segundo dados reportados pelo ministro, em 2017, no Estado de São Paulo, 37 municípios tiveram mais de 30% de suas ocorrências apresentadas por guardas municipais. “Essa efetiva atuação das guardas municipais no combate à criminalidade resultou em um elevado número de mortes em serviço”, afirmou. “Perceba-se, portanto, que as Guardas Municipais têm entre suas atribuições primordiais o poder-dever de prevenir, inibir e coibir, pela presença e vigilância, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais.”
Segundo Moraes, trata-se de atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio municipal. Ele lembrou que, em julgamento anterior, o STF permitiu o porte de arma de fogo pelos guardas, independentemente da população da cidade.
Instituição vive crise de identidade, diz especialista
Para a diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, a guarda municipal vive crise de identidade, pois está nas ruas, fardada, armada e muitas vezes é acionada para agir em caso de crimes. “As guardas em geral têm esse desejo de ser polícia, tem guarda que recebe emenda parlamentar para comprar fuzil, têm guardas criando forças especializadas. Essa forma de atuar é muito ruim, pois se perde a dimensão da guarda que é preventiva, comunitária, de fazer mediação de pequenos conflitos, cuidar das unidades de saúde, de escolas. Perde-se a guarda capaz de criar vínculos com a comunidade para ser uma entidade repressiva.”
Estadão