O Ministério da Saúde contratou uma empresa com dispensa de licitação para fornecer 90 mil frascos de imunoglobulina humana, a R$ 87 milhões, mas ainda não recebeu nenhuma unidade do medicamento. O contrato foi firmado em abril, com previsão de entrega de cinco parcelas até o próximo dia 30 de setembro.
“Até o momento, não há registro de recebimento de insumos, e, em consequência, não foram realizados quaisquer pagamentos à empresa”, afirmou o ministério.
A empresa em questão é a Farma Medical, que assina o contrato na condição de representante nacional da Prime Pharma LLC, dos Emirados Árabes. Em nota, ela garante que os primeiros lotes estão disponibilizados desde o dia 13 de junho.
“A importação do referido produto é de responsabilidade única e exclusiva do Ministério da Saúde”, disse. Conforme a Farma Medical, a disponibilização ocorreu 13 dias depois da autorização de excepcionalidade da importação emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A autorização era necessária porque o medicamento que estava sendo oferecido pela empresa não é registrado na agência.
O dono da empresa, Silvio de Azevedo Pereira Júnior, disse que 30 mil frascos foram efetivamente entregues ao ministério ainda em junho. A reportagem solicitou acesso a documentos que comprovassem, mas não houve a disponibilização.
A Farma Medical possui capital social de R$ 100 milhões e está presente em seis estados.
A dispensa
No final de fevereiro, o ministério abriu processo para a compra de 383,5 mil frascos de imunoglobulina com dispensa de licitação apontando urgência. No total, 20 empresas enviaram suas propostas, e a da Prime Pharma ficou entre as mais vantajosas.
Ao alegar urgência, a pasta afirmava que a primeira parcela de medicamento deveria ser entregue em abril, para não correr o risco de desabastecimento. No fim, a primeira parcela foi entregue somente em meados de junho pela empresa Auramedi Farmacêutica, que ganhou a maior parte da compra.
Imunoglobulina é um medicamento hemoderivado, ou seja, produzido a partir do sangue, usado para melhorar a imunidade de pacientes acometidos por uma série de doenças, como a síndrome de Guillain-Barré. A sua falta no Sistema Único de Saúde (SUS) coloca em risco a vida de pessoas que dependem do remédio.
Demora
Depois que o contrato foi firmado, no dia 14 de abril, o ministério precisaria pedir à Anvisa autorização para a importação em caráter excepcional. A pasta, então, solicitou a documentação à empresa brasileira e fez o pedido no dia 16 de maio. A agência só autorizou a importação no dia 29 daquele mês, o que impossibilitaria, de qualquer forma, que a primeira parcela fosse entregue dentro do prazo, que era dia 30.
Segundo documentos do ministério, somente no dia 20 de junho, o Departamento de Planejamento e Controle Logístico do ministério enviou ofício para a área de Assistência Farmacêutica informando a decisão da Anvisa, 10 dias antes do vencimento da segunda parcela.
Silvio Júnior, da Farma Medical, defendeu que a pasta tomou um tempo maior para aprovação dos documentos enviados por sua empresa do que o tempo dedicado em relação à sua concorrente, a Auramedi. “Não sei por que, mas tomou um tempo muito maior de aprovação”, pontuou.
Descumprimento de contrato
No dia 28 de julho, o ministério enviou uma notificação de descumprimento de contrato alegando que a primeira parcela ainda não havia sido entregue. No dia 22 de agosto, a pasta enviou outra cobrança, apontando atrasos nas três primeiras parcelas.
A Farma Medical admite atraso no cronograma de execução contratual, mas ressalta que isso ocorreu inicialmente “pelos próprios procedimentos pertinentes ao ministério, que na primeira data de entrega prevista em contrato não obtinha sequer autorização excepcional da Anvisa para importação”.
“Esta empresa não descumpriu com suas obrigações de representante nacional e nem os fornecedores diretos do Ministério da Saúde”, defendeu.
Nanjing
Com apenas um funcionário registrado ao menos até março e capital social de R$ 1,3 milhão, a goiana Auramedi conseguiu um contrato de R$ 285,8 milhões no âmbito desse mesmo processo de dispensa de licitação. A empresa diz representar nacionalmente a chinesa Nanjing Pharmacare.
Como mostrou o Metrópoles na última terça-feira (26/9), a Nanjing também é representada no Brasil pela Panamerican Medical Supply, que tem como um dos sócios Marcelo Pupkin Pitta, empresário do ramo que já foi preso na Operação Vampiro, em 2004, e, de novo, em 2007.
As investigações apuraram suspeita de fraude em licitação no Ministério da Saúde, justamente em compras de medicamentos hemoderivados, incluindo imunoglobulina.
A Panamerican, inclusive, firmou dois contratos de R$ 647,2 milhões com o ministério no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em 2021 e 2022, para fornecimento de imunoglobulina na condição de representante da Nanjing. Ao menos R$ 597,5 milhões já foi pago, segundo Portal da Transparência, sendo que 73,1% foi desembolsado no ano passado, entre março e setembro, e o restante neste ano, já no governo Lula.
Metrópoles