Por 11 votos a 0, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu na última sexta-feira que a Câmara dos Deputados tem até junho de 2025 para redistribuir o número de deputados por estado de acordo com a população atual de cada um deles. Esta é a mais recente decisão que a Corte tomou por ter considerado que o Legislativo e o Executivo foram inertes na missão de botar em prática regras previstas na Constituição. A possibilidade de declarar “omissão inconstitucional”, prevista na Carta Magna de 1988, é um mecanismo de controle criado para evitar que os Poderes não cumpram seus deveres, em especial na ausência de edição de lei ou resolução.
Dados disponíveis no próprio Supremo revelam que das 122 sentenças proferidas pelo tribunal desde 1990 com base no instrumento, quase metade (60 delas) ocorreu entre 2019 e junho de 2023. Apesar de não representarem um número expressivo de processos frente ao total de julgamentos da Corte, as ações dessa natureza servem como um termômetro do protagonismo do STF no período recente, na avaliação de juristas. Ao mesmo tempo, a Corte abre fissuras com as Casas Legislativas e Executivo quando puxa para si a palavra final sobre questões que deveriam ser decididas pelos demais Poderes.
Nos últimos anos, temas que geram oposição de segmentos conservadores são comuns em julgamentos dessa natureza. Um exemplo é a criminalização da LGBTfobia, em 2019. Após entender que houve omissão do Congresso, a Corte equiparou esses casos ao crime de racismo.
Análise do GLOBO a partir dos dados do STF mostra que, após 2019, ano em que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, decisões sobre a proteção a minorias e grupos vulneráveis, como povos indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, além de outros direitos sociais, representam 15 dos 60 casos de omissão inconstitucional.
A pandemia de Covid-19 contribuiu para este cenário. Ao menos seis determinações envolveram o contexto da crise sanitária. Uma delas foi a suspensão temporária de despejos e desocupações, estendida a áreas rurais, determinada diante da demora do Congresso em aprovar uma lei para regulamentar o tema. Em 2021, uma liminar foi concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso e depois confirmada pelo plenário. A medida, a partir de um pedido do PSOL, foi criticada por Bolsonaro:
— Como PSOL não consegue nada na Câmara, vai à Justiça, onde encontra seus simpatizantes. Lamentável a decisão do Barroso — disse a apoiadores na ocasião.
Outros julgamentos que ocorrem por inércia de outros Poderes, com base nos critérios do STF, são relacionados ao sistema prisional (12), ao funcionamento do serviço público (11), em especial aposentadorias especiais de servidores, e de segurança pública (9). No último caso, a Corte impôs medidas para redução da letalidade policial em favelas do Rio durante a pandemia. Na ocasião, prevaleceu o entendimento de que houve omissão estrutural do estado do Rio em meio a violações de direitos humanos em operações policiais.
O professor Luiz Fernando Esteves, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), avalia que houve uma virada na postura do Supremo a partir dos anos 2000, atrelada tanto pela avaliação de que o Legislativo não cumpria suas obrigações quanto por uma mudança de perfil da composição do tribunal, processo que ocorre à medida que ministros nomeados na Ditadura Militar se aposentaram. O movimento acompanha a maior visibilidade pública do tribunal na história recente:
— Desde a década de 1990, existia a discussão sobre o que o STF poderia fazer diante da omissão do legislador. O entendimento era que deveria apenas notificá-lo para que ele atuasse, sem qualquer sanção ao descumprimento — afirma Esteves. — Depois, o tribunal assumiu perfil menos cioso de seus limites e talvez isso tenha chegado ao ápice em casos com maior repercussão nos últimos dez anos.
Um marco no tribunal, segundo o pesquisador, foi a decisão de 2007 em que o Supremo aplicou ao funcionalismo público as regras do direito de greve no setor privado até que o Congresso aprovasse uma lei para regulamentar o assunto.
Foto: Editoria de Arte.
Polêmicas à vista
Professor da FGV Direito Rio, Álvaro Palma de Jorge aponta que o crescente protagonismo do STF é explicado por diferentes aspectos. Um fator relevante para ele é que os partidos vêm recorrendo ao tribunal para resolver questões políticas, inclusive quando são derrotados em votações no Congresso. Isso se soma à competência do Supremo pelo foro de prerrogativa de função, que o leva a julgar a mais alta esfera política e a decidir sobre casos recentes com visibilidade na esfera criminal. Já a agenda de direitos individuais tem relação com o perfil conservador do parlamento.
— Pautas como homossexualidade e drogas são mais difíceis de progredirem no parlamento brasileiro. Quem entende que o seu direito é violado e não conquista esse direito na política Legislativa vê uma porta aberta no Judiciário. Faz parte da democracia. A forma que o Legislativo tem para se colocar nessa questão é agir, deliberar, fazer normas — avalia o professor da FGV.
Por vezes, as críticas ao tribunal são públicas, como ocorreu há três semanas, após os ministros se debruçaram sobre a proposta de descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. A ação em curso na Corte, embora não se enquadre nos casos de omissão, gerou marolas com o Legislativo.
Na ocasião, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), fez críticas ao STF por considerar que houve “invasão de competência do Poder Legislativo” naquele julgamento e que “o foro de definição dessa realidade é o Congresso Nacional brasileiro”.
Há mais polêmicas à vista. A expectativa é que a presidente do STF, Rosa Weber, paute outros processos espinhosos. Alguns deles tratam de questões que parlamentares consideram de competência do Congresso, como o que questiona a criminalização do aborto no início da gestação, um assunto caro à bancada evangélica.
Procurados pelo GLOBO para comentar a alta de casos de omissão institucional, Rosa Weber, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco não responderam.
Fonte: O Globo.