Em meio a rumores de que o Ministério da Justiça teria apagado todas as imagens do interior e das laterais da sua sede captadas por quase 40 câmeras de segurança durante os atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes, parlamentares de oposição e juristas avaliam a demora do seu titular Flávio Dino em atender ao pedido da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro como obstrução às investigações e possível crime de responsabilidade.
Na tarde da terça-feira (29) começaram a circular informações, depois publicadas pela CNN Brasil e Record TV, de que os vídeos requeridos pela CPMI haviam sido descartados automaticamente após 15 dias de armazenagem. A Gazeta do Povo pediu à assessoria de imprensa do Ministério da Justiça que confirmasse a notícia baseada em “fontes da Polícia Federal”, que está subordinada à pasta, mas ainda não obteve retorno. As informações são da Gazeta do Povo.
Ocorre, contudo, que faz mais de um mês que a comissão de inquérito recebeu o ofício do ministro Dino, de 28 de julho, no qual nega o envio das imagens alegando que elas estavam sob “investigação criminal”. A reiterada negativa continuou, após série de pedidos de adiamento, de cobranças de parlamentares, da entrega do conteúdo de apenas duas câmeras voltadas ao exterior frontal do prédio e de seu saguão e até consulta ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que referendou a demanda do colegiado.
Para parlamentares e especialistas em direito constitucional ouvidos pela Gazeta do Povo, a longa recusa de Dino em cumprir a exigência de cinco requerimentos de uma comissão de inquérito, aprovados pelo seu plenário antes mesmo do recesso parlamentar, já poderia ser visto como um crime de responsabilidade, que pode levar ao afastamento imediato do cargo e à sua condenação pelo STF. O senador Magno Malta (PL-ES) acredita em novas dissimulações de Dino e afirma que os boatos plantados de inexistência das imagens podem render ao ministro o “troféu cara de pau”.
No último dia 15, um grupo de 16 parlamentares da oposição apresentou denúncia de flagrante desobediência contra o ministro à Procuradoria Geral da República (PGR) e exigiu a entrega dos vídeos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A bancada oposicionista segue apelando ao presidente da CPMI, deputado Arthur Maia (União Brasil-BA), para que tome providências extras, mas ele já tinha avisado antes que não patrocinaria o confronto. A pressão deve aumentar diante da suspeita de “manobra final” para não enviar o material, com eventual declaração tardia de sua indisponibilidade.
Em meio às recusas e protelações de Dino, chegaram à CPMI novos fatos que corroboram as suspeitas da oposição de uma omissão por parte das autoridades federais de segurança, sem a qual não teriam ocorrido as cenas de invasões de prédios públicos na Praça dos Três Poderes. Além das contradições cometidas pelo ministro em entrevistas sobre sua presença no Palácio da Justiça no dia do vandalismo, relatórios do próprio Ministério da Justiça, entregues à CPMI, mostraram a presença de soldados da Força Nacional em prontidão e não empregados. O fotógrafo da Agência Reuters, Adriano Machado, disse que registrou a presença de quase 240 homens nos fundos do ministério.
Investigação de omissões pelo colegiado ficam prejudicadas
O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) acredita que a parcialidade da relatora da CPMI, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), além do respaldo da maioria governista do colegiado, dificultam as investigações sobre a suposta omissão do governo Lula no 8 de janeiro. “Queremos investigar fatos e não aceitamos a investigação seletiva, voltada para blindar poderosos como Flávio Dino e o próprio presidente Lula”, disse. Ele avisou que tomará todas as “providências cabíveis” no suposto caso de eliminação das imagens, receando, contudo, uma “tendência de impunidade”.
Ferreira lembrou que o ministro postou nas redes sociais na véspera do fatídico domingo um conjunto de mensagens informando que uma portaria dele deixaria a Força Nacional de prontidão para defender o patrimônio público de ataques violentos já previstos e que novas providências iriam ser tomadas. “Tudo ocorreu por omissão, a começar pelo general Gonçalves Dias, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e responsável pelo Plano Escudo, de defesa do Palácio do Planalto”, opinou.
Para o deputado, o comando da CPMI e outros defensores da democracia e do Estado de Direito precisam se indignar com a negativa de Dino em enviar a totalidade das câmeras requeridas. Nesse sentido, ele também vê como essencial o testemunho de outras autoridades federais e a quebra de sigilos telemático que apontariam para uma realidade a ser ocultada do relatório final da CPMI. Ele e outros membros da oposição fizeram também questão de lembrar o uso da Força Nacional pelos antecessores de Dino, como Sergio Moro, Raul Jungmann e Torquato Jardim em situações semelhantes e até mais graves, sem a desculpa de que precisariam ser acionados pelo governador do Distrito Federal.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE) afirmou que a hipótese de que o Ministério da Justiça deletou as imagens pode ser mais do que uma esculhambação, mas uma “confissão de culpa”. “Trata-se de um desrespeito não apenas com instituições como o parlamento e STF mas, sobretudo, com os brasileiros. A cada dia vai ficando evidente a verdade: a omissão do governo federal em relação aos atos de 8 de janeiro, que poderiam ter sido plenamente evitados”. Para ele, trata-se de um “modus operandi” da atual gestão petista, “que obstrui descaradamente as investigações” da CPMI, comissão que tentaram evitar a instalação de todas as formas. “Vamos tomar medidas sobre essa manobra vergonhosa e continuar firmes na busca de Justiça”, finalizou.
Eduardo Girão apontou os procedimentos adotados pela Força Nacional em outras invasões violentas da Esplanada como forte indício de omissão federal no 8 de janeiro. “Houve apagões de comando da Polícia Militar, que foram respondidos com medidas do governo federal, inclusive com decretação pelo presidente da República da Garantia da Lei e da Ordem (GLO)”, disse. Em recente entrevista, o ministro da Defesa, José Múcio, confirmou que o governo federal poderia ter evitado o vandalismo se tivesse empregado contingentes militares à sua disposição.
Oposição avalia pedir a prisão de Dino por destruição de provas
O deputado Maurício Marcon (Podemos-RS) revelou nesta quarta-feira (30) que os representantes da oposição na CPMI do 8 de janeiro estão avaliando a possibilidade de encaminhar pedido de prisão do ministro da Justiça, Flávio Dino, ao Procurador-Geral da República (PGR), em razão das suspeitas de ocultação e destruição de provas de suposta omissão dele durante os atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes.
Diante da suspeita de que as imagens do Ministério da Justiça foram apagadas, Marcon afirmou em entrevista à Rádio Jovem Pan que a bancada da oposição já solicitou esclarecimentos sobre o contrato firmado com a empresa responsável pelos serviços de segurança, a fim de verificar se estava prevista a armazenagem dessas imagens por ao menos um ano, a exemplo do que ocorre no Palácio do Planalto e no Itamaraty, onde o Ministério das Relações Exteriores está sediado. Com isso, o argumento de que seriam apagadas à cada 15 dias não se sustentaria.
O deputado gaúcho expressa seu ceticismo quanto ao fato de que as únicas imagens apresentadas por Flávio Dino à CPMI obtidas de duas câmeras foram fornecidas pela mesma empresa contratada, sem aparentes edições. “Além disso como explicar a demora do ministro para confirmar ou não a existência das imagens”, disse. Marcon questiona o fato de o Plano Escudo, protocolo de segurança para proteção do Palácio do Planalto, não ter sido acionado, o que permitiria a restauração da normalidade em apenas 25 minutos. “Além disso, é sabido que cerca de 240 agentes de cinco batalhões permaneceram inativos na região do Ministério da Justiça enquanto os atos de vandalismo aconteciam”.
Conduta do ministro confronta vários artigos da Constituição
Com ou sem as imagens ainda existentes, a simples demora levanta suspeitas de delitos. Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, não há dúvida de que a resistência de Dino em fornecer imagens captadas no interior da sede de sua pasta deva ser enquadrada como crime de responsabilidade previsto no artigo 13 da Lei do Impeachment (1.079/1950). “A legislação é clara e prevê a prestação de informações solicitadas pelo Congresso como obrigação de ministros de Estado”, sublinhou.
Ele acredita que a conduta de Dino pode ainda ser tipificada no âmbito da lei que rege as comissões parlamentares de inquérito (1.579/1952). “Ela expressa a prerrogativa de os parlamentares requisitarem todo e qualquer documento necessário aos seus trabalhos, bem como diz ser crime impedir, ou tentar impedir, o funcionamento regular do colegiado”, observou.
A conclusão óbvia, acrescenta o advogado, é considerar ilícitas as reiteradas negativas do ministro em entregar imagens e documentos, sob a alegação inicial dos materiais estarem sob segredo de Justiça, tampouco protelar ou dificultar acesso sem um justo motivo. “Acessar esses materiais é um direito dos parlamentares e fornecê-los é um dever das autoridades”, concluiu.
Vera Chemim, professora de direito constitucional, lembra que o Ministério da Justiça tem como como finalidade primordial assegurar a efetividade dos direitos fundamentais expressos na Constituição, a segurança pública e o livre exercício dos poderes. “O seu titular tem a obrigação constitucional de atender ao pedido da CPMI, enviando todas as imagens capturadas naquele dia, interna e externamente, garantindo assim a transparência e a publicidade de qualquer fato ou ato que envolva, direta ou indiretamente, um órgão da Administração Pública”, explicou.
Por isso, a advogada também concorda que é possível enquadrar a indisposição de Dino com a CPMI como crime de responsabilidade previsto na Lei do Impeachment, que disciplina um artigo da Constituição. “Ao se negar a cumprir uma requisição da comissão, conforme prevê a legislação específica, ele comete ato de improbidade, equivalente a constranger um Poder Público (Legislativo)”, disse.
Ela acrescenta que o ministro também corre o risco de ser enquadrado no crime de responsabilidade contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, previsto na Constituição e na Lei do Impeachment, uma vez que se nega a tornar pública uma informação de interesse público ou coletivo. Em vários artigos, o texto constitucional trata como obrigação de todos os Poderes atender ao direito fundamental à informação de interesse público, independente de solicitação, dentro dos prazos legais. “Portanto, não restam dúvidas de que o titular do Ministério da Justiça, ao sonegar as imagens solicitadas pela CPMI do Congresso está correndo o risco de ser enquadrado em crime de responsabilidade, a depender da conjuntura político-ideológica”, acrescentou.
Janaína Paschoal pede cautela e busca das razões para a negativa
A ex-deputada estadual (SP) e advogada Janaína Paschoal avalia ser preciso ainda ter cautela antes de atestar o crime de responsabilidade de Flávio Dino. Para isso, recomenda uma avaliação do teor dos pedidos da CPMI, o monitoramento das manifestações do STF sobre o assunto e, finalmente, averiguar os possíveis motivos para o ministro seguir ignorando a comissão.
A coautora do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) e professora da Universidade de São Paulo (USP) lembra que a lei enfatiza como essencial o nível de formalidade nas solicitações de impedimento para se caracterizar o crime de responsabilidade. “Mesmo se a situação se verificar, sugiro ainda aprofundar as investigações. Defendo as regras da transferência e da publicidade, que estão presentes na Constituição, mas antes de se falar em eventual crime de responsabilidade, avalio essas possíveis negativas como um sinal de que não se quer revelar algo”, disse.
Gazeta do Povo