Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, Viena —cidade vista como sinônimo das intrigas soturnas da Guerra Fria—, voltou a ser a capital da espionagem na Europa. E o governo austríaco não parece estar com pressa de mudar isso.
Após uma explosão de atividades clandestinas, os três maiores partidos da oposição do país se uniram para finalmente criminalizar a espionagem na Áustria. Mas, devido à procrastinação do governo, seus esforços por mudanças na legislação ainda não deram em nada.
“Faz tempo que chamamos a atenção para esses abusos”, diz a deputada Stephanie Krisper, do partido liberal Neos, que lidera a campanha. “Mas nada foi modificado no Código Penal. As consequências são graves.”
A ascensão da espionagem em Viena atrai forte reprovação de aliados do país e vem prejudicando sua imagem perante seus vizinhos europeus, cada vez mais preocupados com a própria segurança.
A Áustria sedia várias grandes entidades internacionais, incluindo a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e órgãos da ONU como a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Mas ela tem uma tradição de fazer vista grossa às atividades de inteligência clandestina em seu solo —desde que o alvo das operações não seja o seu próprio governo. Um diretor de espionagem europeu sênior disse ao Financial Times no ano passado que o país era “um verdadeiro porta-aviões” de espiões russos no coração do continente.
Altos funcionários de inteligência europeus estão cada vez mais perplexos com a situação. Viena já não participa de muitos acordos de cooperação de inteligência no continente, coordenados por meio do chamado “Clube de Berna”, rede informal de agências de espionagem europeia batizada em homenagem à cidade homônima na Suíça.
Embora a Áustria tenha interesse em voltar a ser encarada com bons olhos por seus aliados, a Guerra da Ucrânia tem, até agora, sido uma oportunidade perdida. Desde a invasão russa, em fevereiro de 2022, países europeus já expulsaram mais de 400 espiões russos que se passam por diplomatas do território.
Já a nação onde Mozart e Strauss nasceram mandou embora apenas quatro deles. Um funcionário sênior de inteligência de um país ocidental disse à reportagem que há mais de 180 diplomatas russos credenciados em Viena e que ao menos um terço deles usa seus postos para acobertar atividades de coleta de informações. Um número muito maior opera no país ilegalmente, graças à fragilidade do sistema de fiscalização de espionagem.
“É realmente um Velho Oeste”, disse um diplomata, também de uma nação do Ocidente. “A impunidade que se vê aqui é uma coisa quase cômica. Mesmo do nosso lado, tenho certeza.” Agentes chineses, iranianos, israelenses e sauditas também estão presentes em grande número na Áustria, juntamente com dezenas de funcionários americanos, britânicos e europeus encarregados de monitorá-los
A situação virou uma dor de cabeça para o governo, formado por uma coalizão entre o Partido Popular (OVP), conservador, e o Partido Verde, de centro-esquerda. Mas sua queda nas pesquisas de opinião e o agressivo debate interno sobre a neutralidade na guerra levaram a questão da espionagem para baixo na lista de prioridades do governo.
Desde que o Neos propôs a criminalização da espionagem cometida “contra um Estado estrangeiro ou uma organização internacional”, o governo lançou mão de sua influência no Parlamento para suspender qualquer votação sobre o tema em duas ocasiões.
A questão continua suspensa até depois do recesso parlamentar do verão —o governo disse que precisava de mais tempo para realizar consultas interdepartamentais antes de modificar a lei.
Para Krisper, a questão não está sendo levada suficientemente a sério. “Se, por exemplo, a Rússia estivesse espionando a Alemanha –uma de nossas aliadas mais próximas —em solo austríaco, não poderíamos fazer nada, porque isso não estaria acontecendo ‘em prejuízo da Áustria’”, diz ela, em referência à redação atual da lei.
“Viena é e sempre foi um centro perfeito de espionagem”, afirma Gustav Gressel, ex-oficial militar austríaco e hoje membro do think tank Conselho Europeu de Relações Internacionais. “Se você é um agente de inteligência russo e quer falar com uma fonte na Alemanha, para que arriscar encontrá-lo nesse país? Você convida o sujeito para esquiar na Áustria. Ou para um baile em Viena. Você pode recrutar fontes e transmitir informação para fora sem ser incomodado.”
É provável que a capital austríaca abrigue uma grande operação da inteligência russa, o que pode ser notado mesmo por um transeunte casual nas ruas. Os telhados de todos prédios e complexos diplomáticos russos espalhados pela capital estão cobertos de radares, cúpulas e construções improvisadas —algumas das quais erguidas recentemente— que, segundo especialistas, quase com certeza abrigam tecnologia de vigilância eletrônica.
Thomas Riegler, historiador e cientista político, diz que “uma das principais funções da inteligência russa em Viena parece ser a coleta de inteligência de sinais” em uma escala tão grande que levou a operação a se tornar “a mais importante de toda a sua rede de espionagem da Europa”. “Há antenas parabólicas poderosas nos telhados de quase todos os imóveis diplomáticos russos. Até mesmo no telhado do centro cultural.”
Segundo Riegler, Viena é usada como um “centro operacional” dos serviços de inteligência da Rússia e de outras potências hostis, facilitando e dando suporte a operações de espionagem em outros países da Europa.
Funcionários da inteligência austríaca reconhecem que há um problema. “A situação da lei atual na Áustria, e mais especificamente a extrema limitação das possibilidades legais de se combater a espionagem e esses delitos, resulta na presença de um grande número de agentes de inteligência e de serviços secretos estrangeiros em nossa República”, disse em seu relatório anual de 2022 a principal agência de inteligência do país, conhecida como DSN.
O novo diretor do órgão, Omar Haijawi-Pirchner, nomeado para o cargo dois anos atrás com a missão de reformar a inteligência austríaca e trazê-la de volta à comunidade europeia, também lamenta as lacunas presentes na lei. Em maio, ele disse à mídia estatal que a DSN quase não tem poder de interceptação e que a lei que criminaliza a espionagem contra alvos não austríacos “precisa ser adaptada”.
O jeito para os austríacos é torcer para que os problemas se resolvam, diz um funcionário de inteligência de um país ocidental. Ele acrescenta que há pouco incentivo para ações urgentes. “No momento, a posição austríaca na Europa é constrangedora, mas o governo sempre pode dizer que nenhuma lei está sendo quebrada.”
“Se eles modificassem a lei, teriam que fazê-la valer, e a verdade é que eles provavelmente não conseguiriam. Isso seria ainda mais constrangedor.”
Créditos: Folha de S. Paulo