Um adolescente não binário, um pouco zero à esquerda, assassina o presidente negacionista e chulo de extrema direita que esteve à frente do país nos últimos quatro anos. É essa a premissa de “Veado Assassino”, novo livro de Santiago Nazarian prestes a ser publicado pela Companhia das Letras.
Com roupas pretas, tatuagens nos dois braços e um longo cabelo grisalho, e os olhos contornados pelo negrume de um lápis, Nazarian parece mais cantor emo do que escritor, quem sabe algum cover de Robert Smith, vocalista do The Cure. Recebeu a reportagem na sede da editora que o publica sem segurar sua língua.
Sua nova obra é um diálogo corrido, sem qualquer intervenção de narrador, e pode ser lida numa única sentada —o que cumpre a dupla função de se adequar à curta atenção do leitorado jovem e livrar a barra do autor. Tudo que é dito está na boca dos dois interlocutores, afinal, então nada pode ser atribuído a ele.
O leitor acompanha a história de Renato através de sua interação com um entrevistador desconhecido. Toda a conversa é registrada por aspas intercaladas, sem qualquer identificação de quem está falando, colocando o público numa posição similar a de quem intui o que está acontecendo a partir do que ouve casualmente numa conversa.
A estrutura também joga nas mãos dos leitores a avaliação do protagonista. Seria Renato um herói precoce, que matou a Bruxa Má do Oeste e livrou o Brasil do dragão? Se essa posição é atraente, encontra seu maior desafio no jeitão do protagonista, que por vezes parece um incel —os “celibatários involuntários”, jovens malogrados na vida social que povoam a internet porque têm dificuldade para sobreviver ao mundo.
O personagem, que não é nem hercúleo, nem vilanesco, surge a partir da tentativa de Nazarian de compreender as novas gerações LGBTQIA+ —sigla que, ele pensa, se torna cada vez mais longa e logo deve ser substituída por algo menos espalhafatoso. O escritor se sente livre para realizar certo fogo amigo no livro agora que a extrema direita não preside mais o país.
Após se divorciar de um casamento de meia década com um chef de cozinha, voltou ao Grindr, aplicativo gay de sexo. Nos seus 46 anos, preservou o público por quem sempre se interessou, os vintões andróginos.
Foi aí que começou a sair com pessoas não binárias, algumas das quais passaram a se reconhecer como mulheres trans, diz ele. Além de em sua vida romântica, ele busca voltar a ter jovens no seu leitorado.
“Eu comecei a publicar com 25 anos e tinha um público de adolescentes. Comecei numa época em que jovens escritores estavam em alta, eram os youtubers ou influencers da época”, diz Nazarian. “A internet era praticamente só escrita, então nós éramos a influência da vez.”
“Veado Assassino” é uma tentativa de Nazarian de mostrar que, apesar de estar mais velho e estabelecido, ele não perdeu a ousadia.
“Eu me sinto orgulhoso de ainda poder ser contestador, perigoso de alguma forma. Não quero ser só o tiozão finalista de Jabuti —isso é o que se espera, tenho 46 anos e 20 de carreira”, ele diz. Seu livro “Fé no Inferno” perdeu para “Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, na edição de 2021 do prêmio. “Tenho certo orgulho de conseguir fazer algo ousado, não estar numa zona de conforto.”
Enquanto seu primeiro livro, “Mastigando Humanos”, de 2006, repercutiu bem e chegou a ser adotado em escolas, o escritor não consegue imaginar o mesmo acontecendo hoje. Não pela acidez das obras, que sempre esteve lá, diz ele, mas porque o cerco de proteção sobre os mais jovens aumentou muito nos últimos anos.
Por isso decidiu autopublicar seu último livro voltado ao público juvenil, “O Príncipe Precoce”, após se negar a fazer cortes exigidos por outra editora.
O próprio “Veado Assassino” passou por cortes e leitores sensíveis, profissionais treinados para identificar conteúdos que podem ser nocivos para minorias. Além de proteger leitores, as alterações também buscam resguardar Nazarian, que, afinal, narra o assassinato de Bolsonaro em seu livro —o ex-presidente nunca é identificado explicitamente, e detalhes foram alterados para que a descrição não fosse precisa.
Mas o autor acredita que isso não comprometeu o resultado final. “A literatura ainda é um território do indivíduo onde se pode falar várias coisas que em outros lugares não são ditas.”
Fonte: Folha de São Paulo.