Quando prestou vestibular pela primeira vez, há mais de dez anos, Luiza Del Negro não imaginava que um dia poderia exercer uma profissão na área de tecnologia. Parecia coisa “daqueles gênios da matemática”, diz. Depois de mudar radicalmente de área, trocando a veterinária pela programação, a carioca, de 29 anos, agora faz parte de um grupo de profissionais cada vez mais procurados pelas empresas no Brasil: os habilitados para aplicar a inteligência artificial (IA) nos negócios.
Há um mês, ela trabalha no desenvolvimento de sistemas de IA no escritório brasileiro de uma das maiores consultorias do mundo, a Bain & Company. A empresa tem uma parceria com a OpenAI, criadora do ChatGPT, para o uso da tecnologia por trás do chatbot. A ideia é que o cérebro eletrônico possa ser integrado a serviços e sistemas de clientes.
— A tecnologia cresceu muito, mas como profissional dessa área, vejo que ainda há espaço (de expansão), e a IA ainda vai participar mais das nossas vidas — diz Luiza, que atua na equipe de Análise Avançada da Bain & Company.
A expectativa da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom) é que a IA puxe 20% de todo o investimento da indústria de tecnologia local até 2026, com um montante de R$ 69,1 bilhões.
Globalmente, a aplicação da IA do tipo generativa, como a do ChatGPT, poderá injetar até US$ 4,4 trilhões por ano em produtividade na economia mundial, projeta um estudo da McKinsey. E os reflexos já aparecem no mercado de trabalho. A estimativa é que a IA generativa poderá automatizar tarefas que consomem entre 60% e 70% do tempo dos trabalhadores. Se há o temor de perda de vagas, por outro lado cresce a demanda por profissionais que saibam lidar com a inovação.
O mais recente relatório do Fórum Econômico Mundial sobre o futuro do trabalho aponta que 75% das empresas no mundo devem abraçar a IA nos próximos quatro anos, com 2,6 milhões de postos de trabalho criados especificamente para atuar com ela, como cientistas, programadores e engenheiros de dados. No Brasil, especialistas em recursos humanos (RH) apontam sinais de que o apetite das empresas por mão de obra para essa área deve se intensificar nos próximos meses.
Novas rotinas
No primeiro trimestre deste ano, a plataforma Vagas.com registrou 52,6 mil ofertas de trabalho que mencionaram o termo “inteligência artificial” no Brasil. Um levantamento do Linkedin, feito a pedido do GLOBO, identificou crescimento de 94% no número de pessoas que adicionaram habilidades relacionadas a IA em seus perfis desde maio do ano passado. Segundo relatório do Google Trends, a busca por vagas na área de IA cresceu 90% no país nos últimos seis meses.
Nos EUA, berço das big techs que lideram a corrida global pela IA, as vagas na área cresceram 20% em junho, segundo a plataforma Indeed. Além de especialistas na tecnologia, as companhias buscam pessoas que têm condições de trabalhar com soluções de IA.
O advogado Manoel Monteiro, sócio da área de direito societário do escritório Viseu Advogados, é um deles. No escritório, a IA se tornou uma auxiliar para traduções, pesquisas iniciais, formulações de textos-base e outras funções.
— É muito mais fácil revisar um texto que criá-lo do zero. Temos usado o ChatGPT como ferramenta de apoio — diz Monteiro, que tem uma pessoa na equipe dedicada a acompanhar novas soluções de IA que são lançadas.
A popularização desses sistemas tem mudado a rotina até de profissionais fora dos grandes centros urbanos. Na região de Nova Olímpia, no interior do Mato Grosso, 2,5 mil trabalhadores rurais estão conectados a um software de IA que reporta em tempo real as condições do plantio de cana-de-açúcar e as necessidades de manejo do campo.
Os comandos vêm por uma assistente de voz. A IA é conectada também ao WhatsApp, que leva alertas para os funcionários sobre a lavoura. O mecanismo vem sendo implantado pela biorrefinaria Uisa, que treinou a equipe para usar os dispositivos.
— Os funcionários recebem todos os avisos por uma IA que chamamos de Sugar. Ela avisa quando uma máquina precisa ser reabastecida, quando um local precisa de mais adubo ou quando há necessidade de manutenção — diz Rodrigo Gonçalves, diretor de Tecnologia e Inovação da biorrefinaria.
Na Bain, além da vaga preenchida por Luiza, outras dez posições estão abertas para profissionais que atuam com IA, especialmente engenheiros especializados em aprendizado de máquina. Pesquisa da consultoria com 600 empresas de vários países indica que IA é prioridade para 85% nos próximos anos.
— O que a gente tem visto é um apetite das empresas por ao menos experimentar e ver como a tecnologia funciona — diz Lucas Brossi, sócio e head de Análise Avançada na América do Sul da consultoria.
Onda crescente
Quem já trabalha há algum tempo com esses sistemas intensifica o uso com a chegada das inovações generativas. No Hospital Albert Einstein, em São Paulo, uma equipe de 80 cientistas e especialistas foi formada para trabalhar especialmente com algoritmos e IA. O grupo vem há alguns anos aplicando tecnologia em diagnósticos, administração de leitos e pesquisas.
— Temos uma área que constrói a interface e realiza a implementação das tecnologias para todo o corpo clínico. Simplificamos para que a IA sirva de apoio. Hoje, temos 70 aplicações diferentes desse tipo — conta Igohr Schultz, diretor executivo digital do Einstein.
As startups também aceleram as aplicações de IA, ampliando áreas de atuação. Na WeClever, empresa de base tecnológica mineira que cria robôs de atendimento, a maior parte do quadro de 75 funcionários está focada em IA. A empresa, que contratou cinco pessoas nos primeiros meses deste ano, espera ampliar ainda mais a equipe até dezembro, conta Ana Abreu, diretora operacional da startup.
A IA também está criando novas posições na cúpula das empresas para reger as transformações com a tecnologia. Há um mês, o físico Weslley Patrocinio passou a gerenciar os esforços da plataforma de RH Gupy para expandir o uso da IA em ferramentas de ranqueamento de currículos, recomendação de perfis e descrição de vagas.
— Pensamos em como mudar a experiência de determinado produto com a IA, melhorar a experiência. Ajudamos os times de produtos, pessoas e vendas a considerar a IA — diz Patrocinio, que se tornou head de IA da Gupy e lidera uma equipe de 20 pessoas dedicadas ao assunto.
Desafio de todos
O interesse pelo tema explodiu depois do lançamento do ChatGPT, no fim do ano passado, iniciando uma onda que teve como último lançamento o Bard, do Google, na semana passada. Mas especialistas avaliam que a demanda por profissionais com foco em IA ainda é incipiente e mais concentrada no setor de tecnologia.
Segundo Lucas Oggiam, diretor-executivo do PageGroup, do grupo Michael Page, as empresas “ainda estão descobrindo como lidar com ela”. No entanto, Lucas Nogueira, diretor regional da Robert Half, avalia que os profissionais em geral devem buscar entender as mudanças que a inteligência artificial traz para o trabalho:
— O que a gente indica é que os profissionais se preparem para esse tipo de linguagem e esse tipo de desafio, sejam eles de varejo, marketing ou contabilidade. No longo prazo, o uso será muito mais amplo que somente o da área de tecnologia.
Como trabalhadores podem começar a se familiarizar com o universo da IA
Médico, engenheiro, designer ou administrador também precisam entender de IA? Tudo indica que essa tecnologia estará presente na vida de diferentes profissionais daqui para frente. Para quem quiser começar a entender esse novo mundo, já existem cursos sobre o tema, on-line ou presenciais, mas não são o único caminho.
Tatear as ferramentas de IA que já existem pode ser uma forma de se familiarizar aos poucos. A habilidade de fazer isso já tem até um nome: “AI Fluency” ou fluência em IA.
Andrea Janér, fundadora e CEO da Oxygen, plataforma de conteúdo sobre inovação, sugere passos iniciais. Ter a compreensão mínima do que é um sistema de IA é o primeiro. Isso passa por conhecer termos como aprendizado de máquina e processamento de linguagem natural, que caracterizam o processamento de dados por ferramentas de IA. O próprio ChatGPT ou o Bard podem dar essas respostas.
Procure entre as soluções disponíveis de IA as que podem ajudar a resolver problemas específicos. Os sistemas mais conhecidos podem criar modelos de e-mail, resumir informações de textos longos, criar listas e até revisar ortografia. Também existem apps específicos para o mundo corporativo que podem acelerar processos repetitivos.
É importante atentar para os desafios e preocupações éticas associadas à IA. Estamos falando de aplicativos novos, tecnologias ainda em uso experimental e que carecem de regulações. Robôs virtuais podem apresentar informações incorretas ou com viés preconceituoso. Ter consciência das limitações é importante, assim como entender que o que pode ser uma mão na roda tem implicações sociais mais amplas. Um dos riscos é a ampliação da exclusão digital e a eliminação de empregos. Para as empresas, é importante cuidar para que o uso da tecnologia não seja excludente.
Créditos: O Globo.