Eu cheguei nessa cidade lascado, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Poderia ser uma música do Belchior (e até é), mas também é o relato de Airon Martin, CEO da marca de moda Misci.
E, tal qual um rapaz latino-americano, o designer apresentou a coleção “Valor Latino”, na Pina Contemporânea (novo espaço da Pinacoteca em São Paulo), numa espécie de lembrete de que o Brasil é parte da América Latina.
Nascido em Sinop, cidade de 150 mil habitantes no interior de Mato Grosso, e imigrante na capital paulista há dez anos, Airon busca refletir sua primeira infância e vivência do Brasil profundo subvertendo a lógica e criando produtos de luxo. “Eu não sou um estudioso, sou intuitivo”, reflete o designer em entrevista por vídeo com Nossa.
E é a partir dessa intuição que o empresário faz aquilo que é o DNA da marca: misturar. Luxo com artesanal, pop com sofisticado, tradição com contemporaneidade. Para Airon, essas características não são antagônicas.
“O Brasil já foi saqueado e explorado por muito tempo. A gente pode, sim, falar de um produto de luxo contemporâneo brasileiro”, reflete.
Partindo dessa lógica histórica de um país colonizado, Airon tomou para si a luta pela valorização do produto local. E essa postura parece conquistar personalidades que vão desde jovens engajados, figuras pop e até personalidades políticas.
Coloque nessa conta nomes como Emicida, Sasha Meneghel, Chay Suede e Duda Beat. Sim, encontros que parecem, ao menos, improváveis. Mas, para uma marca cuja miscigenação está no nome, essa mistura parece fazer sentido.
Para o empresário, não há uma resposta exata para essa relação, mas ele acredita que a identificação está ligada a um posicionamento: “A minha revolta engajou”.
Esta raiva eclode nas entrelinhas de um design minimalista, a exemplo das modelagens assimétricas, inspiradas na desigualdade brasileira e no desencontro do país tropical com o restante da América Latina. “Sou um brasileiro que viveu um Brasil complexo, viveu o extremo de Brasil e tudo aquilo que eu vivi na minha primeira infância eu consegui traduzir em moda”, observa.
Política progresista
Com essas mensagens subliminares nas roupas, a Misci vem se tornando uma das marcas favoritas não apenas de celebridades, mas ainda de figuras políticas, como a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e a primeira-dama Janja.
Após vestir uma camisa com estampa da cangaceira Maria Bonita, a ministra foi manchete de publicações de moda — algo incomum em sua trajetória pública. Bem como Janja, cuja escolha por uma camisa com estampa de um mapa do Brasil desconstruído em vermelho para uma entrevista a um programa de TV foi comentada em jornais, revistas e sites.
“Pra mim, Marina foi a pessoa mais relevante que vestiu Misci até hoje, sem dúvida. A pessoa que mais me emocionou por vestir Misci na vida foi ela, por tudo que ela representa”, revela o criador, que relembra já ter sido filiado do partido Rede Sustentabilidade, mas hoje considera-se apartidário. “Sou um progressista”, define.
Apesar da escolha pelas peças, segundo Airon, acontecer de forma espontânea pelas personalidades políticas, um ponto costuma ser batido constantemente: o preço. As camisas em questão são vendidas no site por R$ 2.580.
“As pessoas associam a nossa moda no Brasil como um produto barato. Eu falo sobre valor e não sobre preço, meu produto tem um custo médio alto porque ele é bom”, avalia.
Por isso, o designer compreende a indústria como sua principal bandeira de luta, numa busca pela valorização do produto nacional, tanto em matéria-prima como em mão de obra e produto final.
“As principais críticas que tem sobre o meu trabalho é o preço e eu sinto que as pessoas não entendem que até essa crítica é complexo de vira-lata”, relata o empresário ao citar o termo popularizado por Nelson Rodrigues.
Nesse mergulho pelo Brasil, Airon transforma tudo em narrativa e em moda. Tudo mesmo. Pense em Enzo Celulari usando um chapéu de chifres afogando as mágoas em um boteco — vestindo, porém, um elegante terno em pied de poule com modelagem estruturada inspirada em gibão de vaqueiro.
O tal complexo de vira-lata foi personalizado nesta figura quase mítica: o corno. Aquele que é o último a saber o que se passava debaixo do nariz. A moda brasileira, para Airon, é esse “chifrudo” que não reconhece o que tem em casa.
“A gente é o último a saber o nosso valor. Não damos moral pro que temos em casa, o corno vem muito daí, de não dar valor, por exemplo, ao parceiro sulamericano”, observa.
Se em “Valor Latino” a estampa de maxi pipoca em vestidos e camisas de seda parecia remeter ao milho tão característico da alimentação do Brasil e dos Andes, a real é que a inspiração veio de uma outra experiência tão tipicamente brasileira: o Carnaval.
“Você quer a real? Eu estava no Carnaval de Salvador, no bloco da Ivete, e toda a hora eu ia pra pipoca”, revela. Mas, se o papo é miscigenação, há mais simbolismos neste tão simples alimento. A pipoca é sagrada quando falamos de religiões de matriz africana. “Minha avó sempre foi macumbeira, então comi muita pipoca de santo”, relembra.
Com apenas cinco anos de mercado e já tendo figurado duas vezes as listas da Forbes, Airon e sua Misci vêm se consolidando e levantando estas discussões que não se limitam às rodinhas fashionistas, mas adentram a política e a indústria.
E, se antes o empresário se via apenas como designer, hoje compreende o peso de fazer moda.
“A gente muda, né? Eu começo fazendo design. Eu transformo essa minha leitura de sociedade por meio do design. É a abordagem do design que me dá ferramentas pra transformar essa leitura em produto. Então, eu faço design, mas hoje eu também faço moda”.
Créditos: UOL.