Deltan Dallagnol, jurista e político brasileiro, filiado ao Podemos, escreveu um artigo de opinião para o site jornalístico Gazeta do Povo intitulado “O sistema protegerá Lira?”. A matéria, publicada na manhã da última sexta-feira (30), traz uma série de informações sobre gastos e desvios através do orçamento secreto e tece críticas coerentes com o contexto político. Confira a íntegra a seguir:
Nesta semana, ocorreu mais uma edição do “Gilmar Fest”, como tem sido chamado o Fórum Jurídico de Lisboa, festival com ares “acadêmicos” promovido todos os anos pelo Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP), faculdade fundada por Gilmar Mendes em Brasília. Compareceram à folia jurídica em terras lusitanas o vice-presidente Geraldo Alckmin, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o presidente do TCU, Bruno Dantas, vários ministros de Lula e do STF, magistrados de tribunais superiores e governadores.
Registrou presença, também, o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira, que, durante sua fala, criticou os atos de 8 de janeiro e alardeou: “Responderemos às iniciativas antidemocráticas com doses ainda maiores de democracia”. Enquanto Lira aproveitava a boquinha livre na Europa para bradar por mais democracia no Brasil, a Polícia Federal encaminhou ao STF mais uma investigação criminal com potencial devastador contra Lira, a operação Hefesto, que revela fatos nada democráticos.
A apuração refere-se a suspeitas de desvios de R$ 8 milhões ocorridos entre 2019 e 2022 na compra de kits de robótica para mais de 40 municípios de Alagoas, com verbas do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE) oriundas das chamadas “emendas do relator”, o conhecido orçamento secreto, controlado em grande parte por Lira. O presidente da Câmara foi o responsável por direcionar mais de R$ 32,9 milhões do orçamento secreto para a compra dos kits de robótica.
A PF descobriu a existência de um esquema em que a empresa Megalic comprava kits de robótica por cerca de R$ 2,7 mil e os revendia de modo superfaturado para as prefeituras de Alagoas, por R$ 14 mil, em licitações fraudulentas. Os prováveis beneficiários desse esquema, segundo a PF, são Luciano Cavalcante e sua esposa. Luciano tem uma série de ligações com Lira segundo a imprensa: foi seu assessor, teria sido indicado por Lira para chefiar diretório partidário, compareceria a reuniões em nome de Lira, viajaria com ele em aviões da FAB e pagaria contas pessoais do presidente da Câmara.
O presidente da Câmara foi o responsável por direcionar mais de R$ 32,9 milhões do orçamento secreto para a compra dos kits de robótica.
Em documentos apreendidos pela PF com o motorista de Luciano Cavalcante, constam pagamentos totalizando mais de R$ 900 mil atrelados ao nome “Arthur”, que aparece em mais de 40 anotações. Os pagamentos se referem ao custeio de hotéis, despesas com carro, alimentação e telefonia de “Arthur”, inclusive em datas e locais que coincidem com a agenda oficial de Lira.
Há ainda pagamentos relacionados a pessoas com nomes coincidentemente também ligados a Lira, como repasses para “Ivonete” (a mãe de Lira se chama Ivanete), Bill (apelido do ex-senador Benedito de Lira, pai de Arthur Lira), “Álvaro” (um dos filhos de Lira se chama Álvaro) e Djair (um dos assessores de Lira na Câmara se chama Djair Marcelino).
A suspeita da PF – e de quem toma contato com as informações – é de que parte do dinheiro desviado da compra dos kits de robótica tenha sido utilizada para pagar despesas do presidente da Câmara, razão pela qual o caso foi enviado ao STF, onde Arthur Lira tem foro privilegiado. Todos são inocentes até prova definitiva de sua culpa – e no Brasil todos são inocentes para sempre, já que os processos nunca transitam em julgado -, mas a situação precisa ser investigada.
Acontece que, em Brasília, Lira tem vida fácil, e o histórico de investigações cíveis e criminais contra o presidente da Câmara dá indícios pouco promissores de como a operação Hefesto pode se desenrolar no STF. Uma investigação similar contra Arthur Lira, que também envolve emendas do orçamento secreto para pavimentação de estradas de Alagoas, foi “avocada” esta semana pelo procurador-geral da República Augusto Aras, que, em um movimento sem precedentes no Ministério Público Federal, retirou a investigação do procurador de primeira instância que investigava o caso naquele Estado.
Alguns dias antes, o STF, em decisão unânime, “desrecebeu” uma denúncia que o próprio Supremo já havia recebido contra Lira, em um caso de corrupção passiva oriundo da operação Lava Jato. Naquele processo, um outro assessor de Lira havia sido flagrado com mais de R$ 106 mil em dinheiro vivo junto ao corpo durante embarque no aeroporto de Guarulhos e, segundo a PGR, o dinheiro seria entregue a Lira pelo assessor como suborno em troca de apoio político. A mesma PGR que, ao oferecer a denúncia, considerava que o caso tinha provas suficientes para prosseguir, simplesmente mudou de ideia e pediu o arquivamento da ação penal, movimento que já se tornou característico da gestão de Aras junto ao órgão.
Acontece que, em Brasília, Lira tem vida fácil, e o histórico de investigações cíveis e criminais contra o presidente da Câmara dá indícios pouco promissores.
Esta foi a quarta denúncia contra Arthur Lira que o STF rejeitou nos últimos tempos; outras três denúncias criminais também foram rejeitadas sob o argumento de que a acusação estava baseada apenas em depoimentos prestados por meio de colaboração premiada. Vi esse argumento ser usado em outros casos em que as denúncias foram rejeitadas por abundância – e não por falta – de provas.
Num outro caso muito peculiar, o ministro Gilmar Mendes suspendeu e depois encerrou três ações da Lava Jato contra Lira por improbidade administrativa. As ações tramitavam em Curitiba e o mais surpreendente é que, ao trancar as ações, o ministro decretou segredo de justiça, algo para o que é difícil imaginar justificativa, já que ações de improbidade tratam de ações públicas de agentes públicos. O sigilo das medidas é, por si só, um escândalo.
Analisando tudo que aconteceu nos últimos anos, vê-se que se formou uma ampla maioria no STF em torno do “garantismo” e do “antilavajatismo”, o que significa apenas dizer que a leniência com a corrupção e garantia da impunidade dos poderosos voltou a ser a regra de ouro no Brasil. A impunidade dos grandes casos de corrupção no Brasil é prova de que o compadrio que ensejou os esquemas atinge também o Poder Judiciário.
A impunidade, contudo, é seletiva, como se vê na hipocrisia dos muitos garantistas nas redes sociais que seguem o seguinte lema: aos amigos, o garantismo; aos inimigos, o punitivismo. Fica muito mal, nesse contexto todo, a participação de Lira no festival jurídico de Gilmar Mendes em Lisboa, onde confraternizou com os mesmos ministros do Supremo que são responsáveis por julgá-lo criminalmente.
É irônico ainda que Lira tenha discursado em defesa da democracia, que, na famosa definição de Lincoln no discurso de Gettysburg, é o governo “do povo, pelo povo e para o povo”, enquanto é investigado por corrupção. A corrupção mina a democracia porque o governo passa a ser não pelo e para o povo, mas pelo e para o bolso dos corruptos. O desvio dos recursos da educação equivale ao roubo das oportunidades das nossas crianças e do futuro do nosso país.
Apesar da hediondez dos crimes de que é suspeito, Lira tem tratado de suas investigações com tranquilidade, afinal, sua experiência pessoal no STF provou que ele não tem nada a temer em relação às investigações e processos que lá tramitam. A proteção aos poderosos, aos amigos e aos guardiões do sistema sempre foi a regra no Brasil, e todas as evidências concorrem para dar ainda mais segurança ao presidente da Câmara de que “está tudo em casa”.
Créditos: Gazeta do Povo.