Em 25 de junho, Arthur Lira completou 54 anos. Para homenagear o presidente da Câmara dos Deputados, assessores prepararam um vídeo, publicado numa rede social, com depoimentos de felicitações. A peça de dez minutos é aberta com afagos de familiares, e então os quase dois terços restantes são ocupados por prefeitos e prefeitas alagoanos — 25 ao todo— agradecendo por “parceria”, “melhorias”, “benefícios” etc. Um deles define Lira como “o maior líder político de Alagoas na atualidade”.
Apesar de ser oposição ao governador Paulo Dantas (MDB), a influência do parlamentar do PP em seu estado natal é crescente e reflete o poder adquirido em Brasília nos últimos anos, como líder do centrão na Câmara, presidente da Casa (no segundo mandato seguido) e factótum do governo Jair Bolsonaro ao aumentar o controle dos deputados sobre o Orçamento por meio das emendas de relator —agora limitadas pelo Supremo Tribunal Federal.
O avanço de Lira —às voltas com denúncias de corrupção envolvendo auxiliares— acirrou uma guerra com o maior mandachuva da política alagoana, o senador Renan Calheiros (MDB). Pela primeira vez em quase 30 anos, o líder do clã Calheiros tem um rival que, se não conseguiu destroná-lo no comando do estado, encabeça um grupo ascendente e tem métodos de atuação política semelhantes ao seus: poder emanado de Brasília, mas forte atuação nas bases e perfil paroquial e clientelista –embora em campos ideológicos distintos, Lira à direita, Renan à esquerda.
Os 25 prefeitos no vídeo de aniversário são uma breve amostra do cacife de Lira. Aliados calculam que o deputado tem ascendência hoje sobre ao menos 40 prefeituras, entre as 102 do estado, além de controlar cargos e influir em órgãos federais no estado, como Codevasf, CBTU, Incra e Porto de Maceió, para ficar nos mais conhecidos. Algumas dessas áreas estiveram um dia sob a órbita de Renan.
Presidente do MDB no estado, Renan afirma que o partido tem 70 prefeituras “e deverá chegar a 80”. Como Alagoas tem 102 municípios, os dois grupos inflam o tamanho dos seus exércitos e, ao mesmo tempo, há sobreposição de apoios. Vários prefeitos que se mantêm no MDB de Renan foram cooptados por Lira, caso de Luciano Barbosa em Arapiraca, segunda maior cidade do estado, e Kil de Freitas em União dos Palmares.
Seria mais uma guerra política de província, não fossem os adversários dois dos mais influentes parlamentares em Brasília, levando o conflito num estado pequeno (segundo menor do país) e pobre (tem o 20º PIB e o pior IDH entre as 27 unidades da federação) a respingar em questões nacionais como escolha de ministros, apoio no Congresso e andamento de projetos estratégicos para o governo, para o desconsolo do presidente Lula.
GÊNESE
Na campanha de 2010, quando Lira foi eleito pela primeira vez deputado federal, o pai dele, Benedito (Biu) de Lira, disputou uma vaga de senador tendo Renan como concorrente. Fizeram uma parceria velada, com ataques a Heloí sa Helena (à época no PSOL), que começou liderando e terminou sem se eleger. As duas vagas ao Senado ficaram com Biu e Renan, sendo que o primeiro terminou na frente. Foi o sinal de que os Lira ascendiam de patamar e poderiam sombrear os Calheiros.
Em 2014, Renan lançou Renan Filho ao governo do estado, contra Biu de Lira. Numa campanha marcada por ataques de ambos os lados, Renanzinho venceu no primeiro turno, renovando o fôlego do clã. Em 2018, Renan pai se reelegeu senador (de novo em segundo lugar) e Renan Filho, governador (Lira pai perdeu sua vaga ao Senado, Lira Filho foi reeleito mais uma vez deputado).
O fortalecimento dos Calheiros no estado coincidiu com o crescimento de Arthur Lira em Brasília, na esteira da eleição de Jair Bolsonaro, de cujo governo o deputado líder do centrão tomou as rédeas quando assumiu a Presidência da Câmara, em 2021.
O ápice da guerra se deu na campanha de 2022, quando os grupos se digladiaram pelo governo estadual. Renanzinho se licenciou para disputar o Senado (seu vice, Luciano Barbosa, rompeu com o grupo e foi disputar a Prefeitura de Arapiraca; e o presidente da Assembleia, Marcelo Victor, abriu mão de assumir porque também disputaria a reeleição). O governador foi então eleito indiretamente pelos deputados estaduais.
Tudo indicava que o grupo de Lira, aliado de Victor (então na União Brasil), tomaria a cadeira, mas o presidente da Assembleia rompeu com o deputado e migrou com seus aliados para o MDB de Renan. O escolhido na eleição indireta foi Paulo Dantas —que, depois de ser alvo de operação policial e afastado pela Justiça, foi restituído ao cargo pelo STF e reeleito governador.
É unânime em Alagoas que o governador Dantas é mais cria do presidente da Assembleia que dos Calheiros. “Quem manda em Alagoas é Marcelo Victor”, diz o ex-deputado João Caldas, pai do prefeito de Maceió, João Henrique Caldas (PL), e aliado de Lira, ecoando um mantra enunciado por fontes de diferentes matizes.
Durante a campanha, Victor foi abordado pela Polícia Federal num hotel de Maceió com uma mala contendo R$ 145 mil e material de campanha. Ele e Renan atribuem a ação a uma retaliação de Lira. Procurado, Victor não quis dar entrevista.
Lira terminou como o deputado federal mais votado de Alagoas (219, 4 mil votos) e o quarto mais votado do Brasil em termos proporcionais (13,26% do total), confirmando um eleitorado ascendente —ampliou sua votação proporcional quatro vezes desde 2010, enquanto Renan diminuiu a dele desde 2002.
Este é o senador Renan Calheiros
Este é o senador Renan Calheiros
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BRIGA DE RUA
As fissuras dessa campanha alimentam a briga de rua em que descambou a disputa. Renan acusa Lira de ter aparelhado a PF em Alagoas e de prejudicar o governo, como na ação em que o PP foi ao STF para impedir que o dinheiro de um leilão de saneamento ficasse com o Executivo estadual —o pai de Lira é prefeito de uma cidade que pode se beneficiar com a divisão.
Lira diz que é o adversário quem sempre praticou os malfeitos de que lhe acusa. O bate-boca foi parar nos tribunais e nas redes sociais.
“Tivemos que resistir à perseguição deles. Resistimos e ganhamos a eleição. Todo o poder que ele teve usou para perseguir o Estado de Alagoas”, afirma Renan. Procurado, Lira não quis dar entrevista.
O arranca-rabo coincide com vitórias de ambos para pôr fim a inquéritos em que eram réus por acusação de corrupção.
“Essa é a briga mais civilizada que temos na história”, brinca o alagoano Aldo Rebelo, ex-presidente da Câmara e ex-ministro de diversas pastas nos governos Lula e Dilma. “Geralmente terminava em morte, tiroteio, guerra civil”, diz, em alusão ao histórico violento da política local, que, em menor escala e intensidade, sobrevive até hoje.
Espécie de referência para Renan nos primórdios da carreira política de ambos, no movimento estudantil pelo PC do B nos anos 1970, Aldo elogia o colega. “Renan é um político bem formado, tem ideias, capacidade de compor, fazer alianças, sempre consegue sobreviver aos aliados. Lira é o líder do Orçamento.”
Marqueteiro de Lira na última eleição, Rui França (que já trabalhou para aliados de Renan) vê semelhanças entre os adversários. “Arthur atua na mesma pegada de Renan: apoio político, apoio de base. Um tipo de pegada que nem Téo [Vilela Filho] nem Ronaldo Lessa nem Collor tinham, e não faziam o menor esforço para ter. Renan chega aqui [a Maceió] na sexta-feira e recebe prefeito o tempo inteiro. O Arthur faz a mesma coisa. Eles têm uma linha de trabalho muito parecida.”
O tucano Teotônio Vilela Filho, o Téo, governador por oito anos (2007 a 2015) e senador por Alagoas por 20 anos (1987 a 2007), concorda em termos gerais com essa ideia, mas vê diferenças entre Lira e Renan no varejo político.
“Arthur é do acerto político, não é de botar a mão no ombro, de tomar um copo, estender a conversa, feito Renan. O jeito dele é: ‘O que você precisa em tua base para dar voto para mim e meu pai? É um negócio, toma lá, dá cá.” Téo frisa que não tem inimigos políticos e que se relaciona com ambos.
Para João Caldas, “Renan não pode dizer nada, Arthur está só copiando o que ele sempre fez”.
Renan é o principal cacique —ou coronel, segundo os adversários— da política alagoana pós-ditadura, período em que Divaldo Suruagy e Guilherme Palmeira dominaram a cena. Surgiu na política nacional ao ser um dos mentores da candidatura de Fernando Collor à Presidência, na primeira eleição direta pós-regime militar, em 1989. Foi líder do governo Collor na Câmara, mas logo rompeu com o presidente, que não lhe deu apoio explícito na disputa ao governo alagoano em 1990.
Começaria sua trajetória de poder no governo Itamar Franco, como dirigente da Petroquisa, uma subsidiária da Petrobras. Foi ministro da Justiça no Governo FHC e por três vezes presidente do Senado —na primeira, teve de renunciar ao cargo para não ter o mandato cassado em meio a acusações de corrupção.
ENCONTRO MARCADO
Não é certo, mas dá-se como provável uma disputa direta entre Renan e Lira ao Senado em 2026. O emedebista confirma que tentará seu quinto mandato. Embora seja um pragmático e saiba que seu cacife em 2026, sem a Presidência da Câmara, será menor, aliados apostam que ele tentará o voo inédito. “Arthur está se posicionando para concorrer, com grandes chances de vitória”, diz o ex-deputado Davi Davino Filho (PP), segundo na disputa ao Senado em 2022.
“Eu gosto de tê-lo como oposição porque ele costuma perder”, provoca Renan.
Indagado sobre a chance de uma conciliação antes disso, o senador desdenha. “Temos boa relação com todo mundo, com todos os prefeitos. Nós não temos é com ele e não queremos ter, sobretudo depois do que ele fez com Alagoas nos últimos oito anos. Quanto mais poder ele tiver, mais ele usará para perseguir Alagoas. Não dá para ter uma relação.”
Téo Vilela ainda alimenta essa esperança. “Se esses caras conseguissem deixar o ego e a raiva de lado, ajudariam Alagoas, os dois mesmos e o Lula. Todo mundo só teria a ganhar.”
Para João Caldas, é caso perdido. “Vão continuar brigando, não vejo chance de trégua, porque a coisa já foi longe demais. Se vier uma trégua, não vai passar de cinismo.”
Créditos: Folha de S. Paulo.