Único “ponto pacífico” entre Rússia e Ucrânia desde o início da guerra, o acordo de grãos — que permitia o livre transporte de produtos agrícolas ucranianos e russos no Mar Negro — foi suspenso nesta segunda-feira após semanas de especulações e entraves. A medida foi anunciada pelo Kremlin horas depois de um ataque de drones atingir a ponte que liga o país à península anexada da Crimeia. Agora, há temores de que o conflito entre dois dos maiores produtores de alimentos do mundo possa impulsionar uma nova disparada na inflação global, com impactos inclusive para o agro brasileiro.
Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, o acordo — que tem uma renovação quadrimestral — foi suspenso sob a alegação de que a parte relativa à Rússia não estaria sendo cumprida, em referência às sanções econômicas das quais Moscou é alvo da União Europeia (UE) e dos Estados Unidos. Embora os produtos agrícolas russos, como alimentos e fertilizantes, não tenham sido proibidos, o governo argumenta que os bloqueios comerciais e ao sistema bancário internacional prejudicam as transações com países que importam as commodities.
Para o professor de Relações Internacionais e Economia do Ibmec São Paulo, Alexandre Pires, a manobra desta segunda-feira pode ser uma tática do presidente russo Vladimir Putin para pressionar a suspensão de sanções econômicas do Ocidente e, ao mesmo tempo, frear uma contraofensiva ucraniana.
— No momento em que a Rússia vem sofrendo revezes no campo de batalha, ela usa dessa bomba econômica para conter os avanços e diminuir a geração de caixa de Kiev. Como a Ucrânia é um país agrícola, é como se estivessem dinamitando toda a sua economia internacional — analisa Pires ao GLOBO, pontuando que a medida também pode ser mais um dos blefes de Putin.
Antes da guerra, a Ucrânia era responsável por mais da metade da produção mundial de óleo de girassol, além de figurar entre as cinco maiores exportadoras de grãos como trigo, milho e cevada, abastecendo países do norte da África, Oriente Médio e Europa. Com a invasão, em fevereiro de 2022, a inflação de alimentos atingiu patamares históricos, acendendo o alerta de organizações internacionais como as Nações Unidas (ONU) para uma possível crise alimentar global.
Os preços só começaram a registrar queda depois da assinatura do acordo de grãos, firmado em 22 de julho do ano passado após intensas negociações intermediadas pela Turquia e pela ONU — e a única entre Rússia e Ucrânia que obteve algum sucesso desde a invasão. Segundo a agência da ONU para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), o índice de preços de alimentos em junho foi de 122 pontos, 37 a menos do que o pico registrado em março de 2022, mês seguinte ao início da guerra. A queda foi impulsionada justamente pelo declínio nos preços de cereais e óleos vegetais, commodities exportadas pela Ucrânia.
Welber Barral, sócio da consultoria BMJ e ex-secretário de Comércio Exterior do Brasil, avalia que a estabilização nos preços também é resultado de uma readequação do mercado ao novo cenário mundial. Com grande parte da produção agrícola ucraniana comprometida pelos ataques ao seu território, muitos compradores precisaram buscar fontes alternativas para o abastecimento, o que favorece grandes produtores como o Brasil.
— Na exportação, paradoxalmente, à medida que o aumento no preço dos grãos é mantido, a balança comercial brasileira é beneficiada — explica Barral. — O mercado já previu que poderia haver uma interrupção do acordo, os contratos de hoje foram firmados com seis meses a um ano de antecedência, considerando os riscos. Por isso, a estabilização dos preços deve ser mantida no patamar que está até o ano que vem, a depender também da evolução da guerra.
Devido a este “mercado do futuro”, ainda pode levar um tempo para que um efeito nos preços seja sentidos pela população brasileira — e não necessariamente haverá tantos impactos por aqui em comparação a outros países. No entanto, Pires afirma que o aumento da demanda global por grãos, embora possa beneficiar o setor primário do Brasil, também pode impulsionar a inflação desses e de outros produtos internamente.
— Quando o preço de uma commodity cresce, outras também podem subir por causa do chamado efeito da substituição, já que as pessoas tentam trocar um produto por outro — afirma Pires.
Impacto geopolítico
O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky disse, após o anúncio da suspensão do acordo pelo Kremlin, que manteria a exportação de grãos pelo Mar Negro. Antes do conflito, 90% das exportações agrícolas deixavam o país por via marítima, segundo a UE, em especial pelo Mar de Azov, cujos portos foram tomados por tropas russas.
O acordo de grãos previa a liberação de um corredor para a passagem da produção agrícola ucraniana em três portos, em Odessa, Chornomorsk e Pivdenny. As embarcações passavam, então, pelo Estreito de Bósforo, na Turquia, onde eram inspecionadas para impedir o tráfico de armamentos e depois seguiam para os seus destinos. A criação de um novo fluxo sem o consentimento russo pode dar novos contornos ao conflito numa região contaminada por minas e repleta de navios de guerra.
— Existe um corredor humanitário que até poderia permitir esse transporte, mas não seria possível navegar com segurança. Como o bloqueio é naval, a não ser que a Ucrânia destrua navios, as embarcações não conseguiriam cruzar o Mar Negro — afirma Pires. — Mesmo que a Turquia liberasse a passagem, a Rússia não deixaria elas voltarem para os portos.
As reações à suspensão do acordo pelo Ocidente foram imediatas. A porta-voz dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, acusou Moscou de manter a “humanidade como refém”. Já o secretário-geral da organização, António Guterres, alertou que milhões de pessoas “pagarão o preço” pela saída russa da iniciativa.
— Centenas de milhões de pessoas estão passando fome e os consumidores enfrentarão uma crise global de custo de vida. Eles pagarão o preço — disse o secretário-geral da ONU a repórteres, afirmando que a decisão “afetará as pessoas mais pobres do mundo”.
Mas não são apenas o Ocidente e países em desenvolvimento que serão afetados pela medida. A China, uma das principais aliadas de Moscou, é a maior beneficiária do acordo de grãos, seguida da Espanha e da Turquia. O impacto da decisão para as relações com Pequim e Ancara pode indicar que a saída da Rússia não duraria muito tempo.
— A Rússia vai, com essa decisão, afetar muito o preço dos alimentos na China, que podem subir muito rápido. Esse cálculo em relação a aliados não está sendo levado em conta, talvez ele seja mais uma estratégia de guerra do que diplomático — analisa Pires. — Ou então nós estamos assistindo agora uma reação de fato aos últimos movimentos do Ocidente, como o fornecimento de bombas de fragmentação. Como Putin não consegue impedi-los, ele faz o que está sobre o seu controle na parte econômica. Se tiver sucesso, a Rússia pode voltar a ter acesso ao dinheiro internacional.
Créditos: O Globo.