Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
ONGs que nos últimos três anos têm se dedicado a uma cruzada no Judiciário e na imprensa para reduzir as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro contam com uma estratégia em comum: o uso de relatórios supostamente técnicos, mas com dados distorcidos sobre o complexo cenário da violência no estado para embasar pedidos à Justiça por mais restrições à presença da polícia nas comunidades. Em paralelo, tais relatórios também têm sido usados para influenciar debates sobre o tema na imprensa e no meio acadêmico e até mesmo para embasar programas de governo.
Um desses casos ocorreu no lançamento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) pelo governo Lula em março deste ano. Segundo o ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino, um relatório da ONG Redes da Maré com dados distorcidos sobre a violência no Complexo da Maré foi uma das bases para o programa, que ignorou o enfrentamento ao crime organizado.
A Redes da Maré é bastante ativa nos autos da chamada “ADPF das Favelas” (ADPF 635) – ação que tramita no STF na qual ONGs, partidos políticos e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro vêm pleiteado, com sucesso, uma série de restrições às operações policiais nas comunidades, dominadas pelo narcotráfico. Para especialistas, a medida tem gerado graves prejuízos à segurança pública do estado.
Nos autos do processo no STF, a Redes da Maré costuma apresentar, juntamente com outras entidades, dados de relatórios semelhantes, produzidos pelas próprias ONGs, para corroborar uma suposta urgência em reduzir substancialmente as operações.
Os métodos dessas entidades são claros: a) usar dados oficiais em conjunto com não oficiais, supostamente levantados pelas próprias ONGs junto a moradores, para apontar as forças de segurança como causadoras da violência no estado; b) ignorar o amplo domínio de facções ligadas ao narcotráfico nas comunidades; c) fazer defesa contundente da “ADPF das Favelas” pedindo mais e mais restrições à presença da polícia.
Instituto divulga manifesto político sob o rótulo de relatórios de pesquisa
Na companhia das ONGs figuram grupos de pesquisa dedicados ao ativismo político de esquerda, que geram uma série de relatórios com roupagem técnica para abastecer a narrativa “antipolícia” das entidades. Um desses é o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), vinculado à Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ao STF, as ONGs costumam mencionar dados oriundos de boletins do Geni para embasar os pedidos de afastamento das forças de segurança das comunidades. Recentemente, dados criados pelo instituto também foram usados pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro em um documento oficial para solicitar mudanças na condução da segurança pública do estado.
No início de maio, o Geni lançou um relatório supostamente técnico, porém em tom de manifesto político. O título: “Chacinas policiais no Rio de Janeiro: Estatização das mortes, mega chacinas policiais e impunidade”. No parecer, o grupo crava como “chacina” todas as operações policiais em que houve mais de três mortes como resultado de confronto armado, sem analisar os contextos de cada episódio.
Em comunidades dominadas por facções criminosas, agentes de segurança costumam ser recebidos com grande resistência armada ao fazerem incursões para cumprir mandados de prisão, por exemplo. Os ataques incluem táticas de guerrilha, uso de explosivos diversos e equipamento bélico utilizado apenas pelas forças armadas. Nesses casos, frequentemente as forças de segurança reagem com disparos para desobstruir a resistência dos traficantes, o que inevitavelmente ocasiona a vitimação de criminosos e policiais, além de, em menor número, moradores inocentes.
Apesar disso, no documento não há análise sobre o teor das ações policiais – se foram legítimas, derivadas da resistência armada dos traficantes, ou se foram criminosas. Em vez disso, o documento diz que 3,3% das operações policiais feitas no Rio de Janeiro entre 2007 e 2022 se trataram de chacinas cometidas por policiais.
Autores do relatório cravam tese da “chacina do Jacarezinho”, já descartada pelo MP e pela Justiça
No afã de defender uma narrativa, os autores do estudo do Geni sobre “chacinas” retomam a tese da “chacina do Jacarezinho” bastante explorada após a operação policial realizada naquela comunidade em maio de 2021, que resultou em 28 mortes após extenso confronto entre policiais e narcotraficantes.
Longe de qualquer rigor técnico, o grupo trata o episódio como um “massacre” efetivado pela polícia e faz uma dedicação do relatório para que “esse massacre jamais seja esquecido, que seus autores sejam responsabilizados e que chacinas como essas parem de se repetir”. “Até o presente nenhum dos policiais autores da chacina foi legalmente responsabilizado ou tampouco houve alguma ação reparatória por parte do Estado”, dizem os autores do parecer.
Apesar disso, a ocorrência de abusos por parte de policiais foi afastada em 26 das 27 mortes de suspeitos de atividades criminosas pela força-tarefa do Ministério Público estadual e/ou pela Justiça. Em nota enviada à Gazeta do Povo em julho do ano passado, o Ministério Público afirmou que nesses casos “não foram encontradas evidências capazes de indicar a prática de crime por parte dos policiais nos casos relacionados, com conclusão para mortes decorrentes de confronto armado”.
Das três denúncias feitas pelo Ministério Público em relação a envolvidos no confronto, a Justiça aceitou apenas duas: uma contra dois policiais por suposto homicídio doloso e fraude processual em relação a uma das mortes, e a outra contra traficantes responsáveis pela morte de um policial civil durante a operação. Nesta quinta-feira (25), o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou que os policiais incluídos na denúncia do Ministério Público agiram em legítima defesa.
A Gazeta do Povo solicitou informações à coordenação do Geni sobre a metodologia de pesquisa e os mecanismos utilizados para preservar a isenção e o rigor técnico na elaboração de pareceres com financiamento público sobre temas sensíveis à segurança pública. Até o momento não houve retorno.
Relatórios usam dados de pareceres de outras ONGs para reforçar narrativas
A origem de alguns dos dados apontados no levantamento do Geni vêm de relatórios produzidos por ONGs que também participam do grupo de entidades de ativismo político contra a ADPF 635. Em um dos trechos, o parecer menciona levantamento feito pelo coletivo de ONGs denominado Observatório Cidade Integrada, encabeçado pelo Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), que integra a ação no STF.
O boletim menciona que 70% moradores do bairro do Jacarezinho teriam relatado que sentiam insegurança com a presença da polícia no bairro. A pesquisa foi publicada em agosto de 2022, sete meses após o início do programa Cidade Integrada, do governo do Rio de Janeiro, que previa maior presença policial nas comunidades. Ainda segundo o estudo, 50% dos moradores do bairro teriam afirmado que haviam tido suas casas violadas por policiais sem mandado judicial desde o início do programa.
Estimativas da associação de moradores da comunidade apontam que há 80 mil moradores no Jacarezinho. Na prática, segundo a ONG, em apenas sete meses 40 mil pessoas teriam tido suas casas invadidas por policiais, ou seja, nada menos do que 190 invasões diárias. Se concretizados, os números inviabilizariam completamente a operação dos policiais no programa, que se dedicariam exclusivamente às “invasões”.
Segundo o IDPN, o levantamento foi feito a partir de simples perguntas aos moradores. Apesar da fragilidade do relatório, os números foram exaustivamente usados em grandes veículos de imprensa, o que motivou uma nota oficial do governo estadual com críticas: “O relatório divulgado pelo Observatório Cidade Integrada faz uma série de afirmativas sem citação de fontes e evidências, o que torna impossível sustentar os argumentos indicados. O documento não oferece referencial teórico, nem bibliografia, desqualificando-o como pesquisa científica.”
O governo chegou a mencionar outra discrepância: em pesquisa realizada pelo Datafolha antes do início do programa, 59% dos entrevistados responderam ser a favor do Cidade Integrada. Já o relatório das ONGs apontou que apenas 1% estava satisfeito com o programa poucos meses após seu início.
No relatório de maio, o Geni diz, ainda, que grande parte dos homicídios no Rio de Janeiro são praticados por policiais em serviço, “fenômeno que vem sendo denominado estatização das mortes”. Apesar da roupagem científica dada, foi a Rede Observatório da Segurança, formada por sete ONGs que possuem o mesmo discurso político de menor presença de policiais nas comunidades, quem criou o termo em outro boletim divulgado no ano passado.
O coordenador da rede é um cientista político dedicado ao ativismo político de esquerda. Entre as fontes do referido estudo que originou o “fenômeno da estatização das mortes” estão “quatro diários impressos”, “uma dezena de sites e portais online” e “mais de cem contas no Twitter”. Nenhum órgão oficial é nominalmente atribuído como fonte do levantamento.
Restrições à polícia geraram evidente prejuízo aos moradores, diz procurador do MP
Marcelo Rocha Monteiro, procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), aponta que há graves consequências na apresentação de dados de entidades parciais como sendo técnicos para convencer a Justiça em decisões relacionadas à segurança pública.
O procurador explica que há graves impactos aos moradores do estado, sobretudo das comunidades, desde o início das restrições impostas pelo STF. Um deles, segundo Monteiro, é que criminosos de outros estados, ligados especialmente ao narcotráfico, passaram a migrar para o Rio de Janeiro por enxergarem que as restrições à polícia tornaram o local mais seguro para comandarem crimes. Outra consequência apontada por Monteiro é que facções passaram a fortalecer seus domínios por meio da construção de barreiras para impedir o acesso de viaturas policiais.
“As barreiras eram obras improvisadas, mas a partir da ADPF se tornaram verdadeiras obras de engenharia, uma vez que os criminosos passaram a poder construí-las com calma à luz do dia, já que a polícia está proibida de estar presente regularmente nesses locais”, diz o procurador.
“É importante destacar que essas barreiras construídas impedem o acesso não apenas de viaturas policiais, mas de quaisquer veículos, como prestadores de serviços e até ambulância. Ou seja, só entra nas comunidades quem o crime organizado permitir, com evidente prejuízo aos moradores”, declara.
Gazeta do Povo