Foto: Carlos Humberto/ SCO/ STF.
Numa das maiores disputas societárias do capitalismo brasileiro, o ex-ministro Ricardo Lewandowski, recém-aposentado do STF (Supremo Tribunal Federal), foi contratado para escrever dois pareceres e também para atuar como consultor sênior do Grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, na briga com os indonésios da Paper Excellence pela Eldorado Papel e Celulose, que tem uma megaplanta para exportação em Três Lagoas (MS). A J&F é a holding que controla a JBS, maior produtora de carne do mundo.
Ele se juntou ao time jurídico da J&F menos de uma semana depois de deixar o Supremo por ter completado 75 anos e atingido a idade da aposentadoria compulsória. Os valores envolvidos para escrever dois pareceres e o trabalho como consultor são mantidos em sigilo pelas partes envolvidas. As informações são do Portal UOL.
Mas numa causa que envolve R$ 15 bilhões, os gastos da J&F com a defesa nos tribunais já estão na casa de centenas de milhões de reais. Além da defesa técnica, as duas multinacionais litigantes travam uma disputa para contratar consultores influentes no ecossistema do Judiciário brasileiro.
Lewandowski vai integrar um time do qual já fazem parte o ex-presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça) César Asfor Rocha e o ex-presidente do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) Manoel de Queiroz Pereira Calças. É no TJ paulista que a disputa está em curso.
A Paper Excellence contratou como consultores o ex-presidente Michel Temer, inimigo declarado de Joesley desde que foi gravado secretamente pelo empresário na garagem do Palácio do Jaburu, em Brasília, em 2017. O episódio, envolvendo um suposto tráfico de influência de Temer para calar potenciais delatores da Lava Jato, quase pôs o governo do emedebista a pique.
Além de Temer, a Paper também contratou como consultor o ex-governador de São Paulo João Doria, ambos com forte trânsito nas cortes superiores e no tribunal paulista.
Os valores dos contratos com os advogados não foram revelados. Mas, por decisão judicial, os honorários de sucumbência – valor pago pela parte vencida à defesa da parte vencedora – da defesa da Paper foram arbitrados em R$ 600 milhões.
A causa ainda envolve grandes escritórios de advocacia. Pela J&F, o E.Munhoz, especializado em Direito Empresarial, está no processo desde o começo. Pela Paper, quem concentra a estratégia jurídica é o Mattos Filho, uma das maiores bancas do país, com atuação em diversas áreas.
A origem da disputa pela Eldorado
Em 2017, por causa do acordo de leniência de R$ 11 bilhões assinado com o MPF (Ministério Público Federal) na Lava Jato, a J&F precisou vender ativos.
Um desses ativos foi a Eldorado, vendida em setembro de 2017 por R$ 15 bilhões para a Paper Excellence, uma empresa da Indonésia.
O contrato previa o pagamento de R$ 3,8 bilhões no ato da compra por 49% da Eldorado, e R$ 4,1 bilhões em até um ano pelos restantes 51%. O resto corresponde às dívidas da Eldorado.
Para comprar os 51% restantes, no entanto, havia condições. A principal delas era que, para assumir o controle da Eldorado, a Paper deveria levantar as garantias dadas nos empréstimos, o que hoje corresponde a R$ 11,3 bilhões. E a J&F afirma que a companhia indonésia nunca cumpriu com essa condição.
Já a Paper diz que os irmãos Batista desistiram do negócio ainda no primeiro semestre de 2018, quando o preço da celulose valorizou no mercado internacional e o dólar ficou mais caro em relação ao real.
A empresa indonésia acusa a J&F de abandonar as tratativas para concluir a compra e pedir mais R$ 6,6 bilhões para encerrar o negócio e passar o controle da Eldorado à Paper.
A J&F nega que o pedido tenha sido por “mais dinheiro”. Em petição à Justiça à qual o UOL teve acesso, a companhia diz que, por causa das tentativas frustradas de negociação, os controladores das três empresas fizeram uma reunião em Los Angeles, nos Estados Unidos, no final de agosto de 2018.
Nessa reunião, cada empresa jogou uma proposta na mesa:
A Paper alegou que a J&F sumiu das negociações. Sugeriu, então, transferir para a Eldorado o dinheiro necessário para levantar as garantias.
A J&F não quis, dizendo que o movimento a transformaria em devedora da Paper, mesmo sendo controladora da Eldorado, caso a Paper desistisse do negócio repentinamente.
A gigante de carnes, então, sugeriu estender o prazo da conclusão do negócio por mais seis meses, por meio de um novo contrato.
Esse novo contrato, conta a petição, deveria considerar os novos valores envolvidos no negócio: os 49% comprados pela Paper estariam avaliados então em R$ 7 bilhões, e os 51% da J&F, em R$ 10 bilhões. Portanto, seriam necessários mais R$ 6,6 bilhões para inteirar os valores previstos no contrato antigo ao novo contrato proposto ali, em Los Angeles.
O negócio não saiu. Em novembro de 2018, a 1a Câmara Empresarial do TJ-SP decidiu que o prazo para conclusão da venda da Eldorado ficaria suspenso até que uma arbitragem resolvesse as diferenças entre a J&F e a Paper Excellence – conforme prevê o contrato de venda da Eldorado.
Meses depois, em abril de 2019, Cláudio Cotrim, presidente da Paper no Brasil, disse em entrevista à Folha de S.Paulo que os R$ 6,6 bilhões “era o que [os donos da J&F] realmente queriam”, e acusou os irmãos Batista de agirem de má-fé. Na entrevista, ele reconheceu não ter provas disso, disse ter apenas “nossos testemunhos”. Um processo por calúnia foi aberto por causa disso, mas arquivado pela Justiça de São Paulo.
Arbitragem
Com a decisão do TJ-SP, a Paper Excellence deu início à arbitragem em maio de 2019. O pedido era para que a câmara arbitral obrigasse a J&F a cumprir o determinado em contrato e transferisse o controle da Eldorado. Já a J&F alegava que a Paper não tinha se comprometido com o levantamento das garantias.
O caso foi resolvido em fevereiro de 2021, a favor da Paper, por três votos a zero. A empresa apresentou um comprovante de que os R$ 11 bilhões necessários para levantar as garantias haviam sido depositados no BTG. O dinheiro hoje está numa “escrow account”, termo em inglês que se refere a uma conta de garantia mantida com dinheiro das partes em conflito em arbitragens.
Acusação de espionagem industrial
A J&F tenta anular a decisão da arbitragem na Justiça, com base em três argumentos:
A holding dos irmãos Batista alega ter sido alvo de “espionagem cibernética” contratada pela Paper para que a empresa indonésia tivesse acesso à sua estratégia de defesa na arbitragem;
Um dos árbitros, Anderson Schreiber, mantinha seu escritório no mesmo endereço que o advogado Guilherme Forbes, que foi arrolado pela Paper como testemunha na arbitragem;
A sentença arbitral obrigou as empresas a assinarem contratos não previstos na negociação da venda da Eldorado – a transferência do dinheiro para a Eldorado para levantar suas garantias.
Os argumentos da J&F foram rejeitados pela Justiça, duas vezes.
Primeiro, pela juíza Renata Maciel, da 2a Vara Empresarial de São Paulo – hoje, ela é assessora do ministro Villas Bôas Cueva no STJ, o relator prevento para esse caso.
Na sentença de julho de 2022, à qual o UOL teve acesso, ela disse que as versões apresentadas pelos envolvidos na “espionagem cibernética” eram antagônicas e não foram capazes de confirmar se o hackeamento aconteceu ou não. E nem que a suposta espionagem tivesse a ver com a arbitragem ou pudesse prejudicar a J&F.
Quanto à imparcialidade de Schreiber, a magistrada escreveu que ambos negaram se conhecer. E anotou que os escritórios dos dois deixaram de compartilhar o endereço mais de três anos antes do início da arbitragem – fora, portanto, do prazo exigido por lei para revelação de possíveis conflitos de interesses.
Foi nessa sentença que ela decidiu que os advogados da Paper deveriam receber R$ 600 milhões. A conta dela era que a causa valia R$ 6 bilhões, o valor supostamente exigido pela J&F para concluir a venda da Eldorado. E os honorários de sucumbência deveriam ser de 10% do valor da causa.
Como está o caso hoje
A J&F recorreu, mas o desembargador Franco de Godoi negou o pedido, mantendo a sentença. A gigante de carnes, no entanto, agora sustenta no TJ-SP que Godoi não é o relator correto para o caso, mas sim o desembargador Natan Zelinschi – ele havia julgado outro recurso da J&F contra uma decisão incidental da juíza Renata, antes de ela negar o pedido de anulação da arbitragem.
Hoje, o caso depende de uma decisão do Grupo Especial de Câmaras Empresariais do TJ-SP. É esse colegiado que vai definir quem será o relator dos recursos das empresas na discussão sobre a validade da arbitragem. O próximo passo é o relator Costa Netto, relator dos questionamentos à relatoria do desembargador Franco de Godoi, botar o processo em pauta.
Créditos: UOL.