Foto: Reprodução.
“Rapaziada, vim contar um de muitos casos que acontecem no mundo esportivo: eu me tornei uma pessoa viciada. Comecei a querer apostar alto. Me perdi totalmente nisso”.
Aos 22 anos, o ajudante de serralheria Lucas Nascimento cravou frases como essas, nas redes sociais, para dizer que iria parar de apostar. O dia em que publicou o texto, em janeiro, foi o mesmo em que foi despejado com a mulher e os filhos.
O dinheiro do aluguel e da comida estava indo para jogos. Em um ano, foram R$ 72.853,54, entre salários e empréstimos, enquanto sua renda mensal era de cerca de R$ 2.000. Os palpites envolviam campeonatos de futebol no Brasil e na Europa.
“Fui perdendo o controle. Vivia nervoso, sempre tentando recuperar meu dinheiro. Fiquei completamente viciado. Mesmo querendo parar”, diz, descrevendo o sentimento como “uma tristeza muito grande”, que está “tentando reverter da melhor forma”.
Ele não é um caso isolado. Especialistas afirmam que o vício em apostas online avança no Brasil e observam alta na busca por tratamento. Um fator de preocupação é o alcance crescente entre jovens e adolescentes.
A psiquiatra Carla Bicca, coordenadora da Comissão de Adicções da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) diz que a exposição aos jogos já representa algum risco.
“Nós temos recebido muito mais gente do que antes. Isso está chegando nos consultórios e nas internações. É algo crescente e nesse último ano houve um boom. A pandemia deu impulso e a percepção clínica é de que com o período da Copa piorou bastante. As pessoas começaram a entrar mais em apostas e isso é uma roleta russa”, pontua.
O coordenador do Pro-Amjo (Programa Ambulatorial do Jogo Patológico) do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), Hermano Tavares, indica que há uma mudança progressiva no perfil que busca tratamento.
“O paciente, até 2018, tinha idade média de 47 anos e o jogo era, principalmente, o caça níquel eletrônico. Agora, estão chegando indivíduos com 20, 25 anos”, afirma. As apostas vão desde o “jogo do aviãozinho”, em que o usuário ganha de acordo com a altitude escolhida, à segunda divisão do campeonato grego de vôlei de praia.
Entre 1.500 e 2.000 jogadores compulsivos foram atendidos no Pro-Amjo desde sua criação, em 1998. “A procura é constante. As pessoas estão transicionando para outras formas de jogo, e pessoas que não tinham dificuldades com jogos passaram a apresentar”, diz Tavares, pontuando que “a Copa foi o início de uma campanha publicitária muito pesada, estimulando muito as apostas para uma população que não conhecia isso”.
A publicidade do setor é alvo de investigação do MPF (Ministério Público Federal), em São Paulo. Em Goiás, um esquema de manipulação de resultados em prol de apostas no futebol está em apuração. Enquanto isso, uma proposta de regulamentação do setor está em construção no governo federal. No campo da saúde, a gestão prevê que as empresas de apostas promovam ações de conscientização e prevenção sobre o vício. Ministérios que concebem as regras foram procurados pela reportagem, mas não responderam sobre o atual cenário.
A prevalência do vício
No Brasil, 1% da população preenche critérios para desenvolver o transtorno do jogo ao longo da vida; 1,3% não chegam a preencher critérios, mas expressam dificuldades com as apostas, como endividamento e brigas familiares
No mundo, 0,1% a 6,0% é a prevalência mundial do problema entre adultos
Em São Paulo, o programa Jogadores Anônimos, com grupos de ajuda para recuperação, vê um avanço maior na procura desde dezembro, fenômeno puxado por apostas online. Estímulos para a prática e relatos de perda de controle se espalham nas redes. Anúncios no celular e na televisão instigam e lançam ofertas para começar. “Chegou a sua vez de ganhar”, diz um deles.
A confeiteira Tamires Carvalho, 28, foi atraída por uma plataforma de cassinos online. Viu a tentação no Instagram de um músico com 3,6 milhões de seguidores. “Ele dizia que ganhava de R$ 1 mil a R$ 10 mil por dia sem sair de casa. Mostra carros e mansões falando que conquistou com o dinheiro da plataforma. Eu pensei que também iria conseguir”, conta.
Ela parou de jogar há quase três meses. Há dois, faz tratamento psiquiátrico e psicoterápico com apoio financeiro da mãe. “Percebi que começou a virar vício quando já não ligava mais em perder e sim em recuperar. Eu queria jogar 24 h. Devo ter perdido quase R$ 300 mil. Também perdi a confiança da família, quase perdi meus filhos, tive uma gravidez conturbada, entrei em depressão, tentei me suicidar”.
Fatores de risco
- Começar a apostar
- Tratar a aposta como investimento financeiro/fonte de renda e, na esteira disso, se arriscar cada vez mais
- Predisposição genética
- Ter na família alguém com um vício (a álcool, a drogas, comida ou ao próprio jogo, por exemplo)
- Incentivo de amigos, influenciadores e de outras pessoas para apostar
- Convergência de mídias (Ex: videogames que adotam visual e práticas de jogos de azar e jogos de azar com visual mais lúdico, semelhante ao de jogos de videogames, estimulando as pessoas a apostarem sem que percebam;
- Ter o hábito de jogar desde criança
- Ter algum outro vício
- Ter problemas para se controlar no jogo desde a primeira vez que jogou, mesmo que não jogue com muita frequência.
Fonte: Hermano Tavares (PRO-AMJO/USP) / Carla Bicca (ABP)
O jogo estimula o mecanismo de recompensa do cérebro, diz Carla Bicca. O vício é rápido, segundo a especialista da ABP, pois mexe “muito” com sistemas de gratificação.
“Eu vou lá, jogo, ganho. Aí perco. Vou tentando. Quando falta aquilo, a pessoa tem abstinência, fica irritada, ansiosa, triste, desmotivada, então sente que precisa jogar. É como se jorrasse dopamina no cérebro, o que é muito parecido com usar cocaína ou outra droga. É uma euforia, um ‘high'”, diz.
Para a pedagoga Gideane Nascimento, 33, a sensação era de uma “adrenalina maldita”. As apostas começaram em R$ 100 e logo subiram. Até que começou a ganhar pouco ou perder tudo. “Coloquei na cabeça que teria que recuperar para que ninguém descobrisse”, conta.
A ficha da dependência caiu quando se viu devendo R$ 17 mil e empenhou o carro de uma pessoa próxima com um agiota. “Eu não conseguia parar. Quando jogava, o dinheiro parecia apenas algoritmo, que de forma nenhuma prejudicaria minha vida. Eu me sentia poderosa. Quando perdia, me sentia impotente, mas desafiada”, diz.
“Agora, tem dias que choro compulsivamente e não consigo trabalhar. Tenho tremores, palpitações, medo de morrer. Tive recaída em março. Eu estava sem jogar havia quatro meses. Agora, parei. É uma luta constante. Eu estou doente, mas estou me recuperando”.
Seu tratamento começou este ano. Nascimento também encontra e oferece apoio emocional em um grupo de pessoas que enfrentam o vício. “Hoje estou ajudando três pessoas que estavam viciadas. E elas me veem como exemplo de saída”.
10 Questões que podem indicar problemas
Responda sim ou não para uma análise inicial, o que não afasta a necessidade de avaliação de um especialista:
- Você passa muito tempo pensando em jogos de apostas?
- Está gastando mais dinheiro nas apostas com o passar do tempo?
- Já tentou parar ou reduzir as apostas, mas não conseguiu?
- Fica agitado ou irritado se tenta diminuir o ritmo ou não aposta?
- Faz jogos de apostas para escapar de problemas ou para se animar?
- Continua jogando depois de perder dinheiro para tentar recuperá-lo?
- Já mentiu para alguém sobre quanto tempo ou dinheiro gasta apostando ou sobre quanto perdeu?
- Já roubou para financiar apostas?
- Jogar tem afetado o seu trabalho, relacionamentos e a vida familiar?
- Você pede dinheiro emprestado quando perde dinheiro apostando?
Dizer “sim” a uma pergunta indica a necessidade de ficar atento. A resposta positiva a três questões significa que é hora de buscar ajuda especializada.
No caso de cinco ou mais, é imprescindível procurar tratamento o mais rápido possível, pois isso aponta para um problema que pode estar afetando toda a sua vida.
Fonte: NHS (Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido)
Onde procurar ajuda
Jogadores Anônimos do Brasil
PRO-AMJO
https://www.proamiti.com.br/dependencia-de-jogo
(11) 2661-7805
Procure uma UBS (Unidade Básica de Sáude) ou Caps (Centros de Atenção Psicossocial) mais próximos de sua residência. (Renata Moura/Folhapress)
Créditos: O Tempo.