“Queria me mudar para Florianópolis, lá não tem inflação”, desabafou o argentino Walter Prieton, 52, dono de uma mercearia perto da Plaza de Mayo, em Buenos Aires. A afirmação foi feita no mesmo dia em que a Argentina bateu 104,3% de inflação anual, a mais alta em 30 anos.
A disparada descontrolada da inflação faz os argentinos sentirem os efeitos nos preços dos alimentos, que os obriga a comprar apenas o essencial e abandonar as marcas favoritas pelas mais baratas. O cenário é sombrio para o governo que busca se manter no poder nas eleições de outubro, mas também não ajuda a oposição, dizem analistas, que veem um impulso aos “outsiders”.
Os números da inflação publicados pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) na última sexta-feira, 14, caíram como uma bomba para o governo de Alberto Fernández, que já lida com uma alta rejeição e a indefinição de sua coalizão para as primárias eleitorais de agosto. Em julho, o governo apontou Sergio Massa como a grande promessa de ser um superministro e salvar a economia, mas a expectativa se dissolveu com o descontrole inflacionário e cada vez menos os argentinos acreditam que o problema terá solução.
Prieton vende doces, salgadinhos e refrigerantes e conta que cada dia que passa tem menos clientes. Isso porque doces e produtos considerados não essenciais para a alimentação tem ficado de fora da lista de compra dos argentinos. No supermercado mais próximo, uma senhora de 82 anos, que não quis se identificar, mostra o carrinho de compras com carnes, ovos e verduras e corrobora que nos últimos meses só compra o essencial. “Eu moro sozinha, ainda dá para viver, mas fico pensando em quem tem filhos”, reflete.
Indefinição de candidatos na Argentina
A Argentina tem uma etapa de pré-campanha eleitoral que terminará em agosto, quando as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso) determinarão quem disputará a eleição presidencial. As Paso, criadas por lei no governo de Cristina (2007-2015), são eleições primárias nas quais partidos e alianças partidárias elegem seus candidatos.
No entanto, muitas vezes, como aconteceu com o próprio Fernández em 2019, apenas um candidato participa. Este ano, o único que não terá rivais nas primárias será o deputado e candidato de direita Javier Milei, o único que não disputará a candidatura de seu partido, Avança Liberdade. O economista e líder da direita argentina, admirador dos ex-presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, está em campanha desde o ano passado e, segundo algumas pesquisas, teria chances de conquistar uma vaga no segundo turno das presidenciais.
Desde que o ex-presidente Maurício Macri desistiu de concorrer à eleição, abriu-se uma disputa feroz na aliança opositora Juntos pela Mudança. Na coalizão governista Frente de Todos (formada por peronistas e kirchneristas), vários disputam poder para sairem candidatos, sem uma definição clara. Apenas Cristina Kirchner admitiu que não vai concorrer a cargos executivos.
O presidente Alberto Fernández ainda especula a possibilidade de disputar a reeleição, mas seu índice de rejeição atingiu 65%, e analistas dizem que seu nome implicaria uma derrota para o peronismo. Os nomes mais cotados eram os do ministro da Economia, Sergio Massa, do embaixador no Brasil, Daniel Scioli, do governador da província de Buenos Aires, o kirchnerista Axel Kicillof, do deputado Máximo Kirchner, filho da vice-presidente, e de alguns dirigentes peronistas. Mas a disparada da inflação pode ter amargado ainda mais as esperanças governistas.
O preço dos alimentos
Com um aumento de 7,7% na inflação de fevereiro a março, os argentinos já não conseguem se planejar, pois os itens de uma lista de compras amanhã serão mais caros que os de hoje. A estratégia tem sido comprar opções mais baratas, principalmente de carnes e derivados do leite, os produtos que sofreram a terceira maior alta mensal, segundo o Indec.
“Se você olhar, as prateleiras com produtos de marcas conhecidas estão lotadas, enquanto os produtos mais baratos acabam em poucas horas”, observam os estudantes Marcel Espinoza, 20, e Grecia Cardeña, 19. Cardeña conta que adora comprar leite de uma marca específica, mas estava levando um litro da marca do próprio supermercado pois estava a metade do preço.
“Quando chegamos, o leite custava menos de 200 pesos, agora está o dobro”, afirma Espinoza apontando para a etiqueta de preço indicando mais de 400 pesos cada litro. O casal é do Peru, mas mora em Buenos Aires há um ano e meio e diz sentir uma queda brusca em seu poder de compra neste tempo.
A inflação de março é a maior desde abril de 2002, quando marcou mais de 10%. Entre os aumentos registrados em março, destacam-se os dos setores de educação (29,1% mensal), devido ao início do ano letivo, vestuário e calçados (9,4%), coincidindo com a mudança de estação. Mas o que teve mais impacto na vida das pessoas foi o aumento no preço dos alimentos, de 9,3%, impulsionados pelo preço da carne, dos derivados do leite e dos ovos.
“Esses 7,7% desta sexta significam simplesmente que os salários das pessoas que as permitiam somente comer, agora permitem menos ainda”, explica Juan Carlos Rosiello, professor do Centro de Análises Econômicas e Empresariais da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Católica Argentina. “E no fim os mais vulneráveis são os que mais sentem a inflação”.
“Os pobres estão ficando cada vez mais pobres. Hoje temos cerca de 40% de pobres, uma coisa inacreditável para Argentina, e isso só cresce. E a situação é pior se você olhar os números de crianças pobres, que atualmente estão em torno de 60%. Ou seja, seis de cada dez crianças são pobres na Argentina”, completa o professor.
Atualmente, mais de 11 milhões de argentinos vivem abaixo da linha da pobreza, segundo dados do segundo semestre de 2022 do Indec. Um dado que havia caído em 2020, mas voltou a crescer a partir do segundo semestre de 2021.
Segundo cálculos do Clarín, na cidade de Buenos Aires uma família precisa ganhar mais de 190.000 pesos – sem considerar gastos com aluguel – para não ser considerada pobre com estes números inflacionários. Se somar o aluguel, os valores passam de 260.000 pesos. Em um cenário em que a média salarial do país gira em torno de 80.000 pesos, de acordo com o Indec.
Impacto nas eleições
A inflação tende a ser o grande tema a pautar as eleições nacionais deste ano. Segundo economistas, o cenário para o ano que vem é ainda mais desolador. Consultorias projetam uma inflação de três dígitos pelos próximos três anos, algo que não se via desde o final dos anos 80. “A solução para isso é dolorosa, muito dolorosa, e leva tempo. O problema é que ninguém está disposto a fazê-la”, afirma Rosiello.
“A inflação é o tema que mais angustia as pessoas agora e isso reflete diretamente nas eleições”, afirma María Lourdes Puente, professora de Ciência Política na Universidade Católica Argentina. “O ministro da Economia havia dito que a inflação ia baixar 3%, e não está conseguindo, então isso claramente afeta muito mais o governo, porque não cumpre o que prometeu”.
Para ela, no entanto, a oposição também sentirá os efeitos da crise, com o sentimento alastrado entre a população de que os políticos não pensam neles. “O problema é que a classe política está brigando todos os dias entre si e as pessoas estão vendo isso, e neste ponto isso também afeta a oposição. Não necessariamente a inflação em si, mas o mal estar que gera a inflação”
Sonia Escudero, 69, é peronista “desde sempre” e vê esta realidade como um trabalho da oposição, que sempre busca atrapalhar os trabalhos do governo. “O governo implementou o ‘Preços Justos’ [programa de Massa para controlar os preços], mas não tem dado o resultado que esperávamos”, afirma. “Acredito que o governo faz o possível, mas há interesses de fora que estão agindo contra para que os preços aumentem. Eu pessoalmente creio que a culpa é da oposição”.
A assistente social conta que além de reduzir a qualidade dos produtos que compra, também pesquisa muito e nunca faz a compra em um mesmo lugar. “Os vinhos neste supermercado estão impossíveis, quase 40% mais caros que em mercadinhos de bairro, mas há produtos que não se encontram em mercearias. O frango eu compro em um lugar e a carne de boi em outro”. Um movimento que pequenos comerciantes dizem perceber nas ruas, com cada vez mais gente buscando alternativas aos preços das grandes redes.
Já Prieton, o dono da mercearia perto da Plaza de Mayo, atribui a culpa a todos os políticos que não pensam nos argentinos. Ainda não decidiu em quem vai votar, mas admite que tem observado Javier Milei com mais atenção, justamente por estar de fora da dualidade peronistas versus oposição.
O deputado tem subido nas pesquisas de intenção de votos, surpreendendo a classe política. Apesar de ser deputado, tem um discurso de outsider, e o próprio Prieton observa que Milei está mais próximo da oposição macrista do que tenta se distanciar. “Ele, ao menos, é formado em Economia”, afirma dando com os ombros.
“Milei se beneficia dessa situação com um teto”, observas Lourdes Puentes. “Se beneficia porque aproveita essa onda de insatisfação com a classe política. Mas também há gente que o vê como uma pessoa disruptiva e não dá a sensação de que consegue resolver isso. Mas a verdade é que tudo continua indefinido.”
Estadão