Um homem de 55 anos vem chamando a atenção dos internautas ao postar vídeos nas redes sociais em que é visto transportando móveis e eletrodomésticos para os moradores da pequena cidade de Cariús, no sertão do Ceará. De forma inusitada, Antonio Pereira da Silva (ou Antônio Cabeludo, como é conhecido) transporta guarda-roupas, fogões, geladeiras e máquinas de lavar sobre uma pequena moto Biz. A “Biz da Mudança”, como ele chama.
Em seus vídeos no Kwai, TikTkok e Instagram, que já somam milhões de visualizações, Silva compartilha o dia a dia do trabalho que realiza há 16 anos e no qual se tornou um “especialista”. Em um deles, de maior sucesso entre os internautas, ele transporta um guarda-roupas de seis portas, equilibrado sobre o banco da moto.
Com a moto, ele consegue chegar aos locais mais isolados do sertão, acessando estradinhas de terra que ele chama de “caminhos de burros”, em que nenhum carro consegue passar. Dessa maneira, ele sobe e desce morros e atravessa regiões isoladas, com solo irregular, típicas da região Centro Sul do Ceará.
Silva carrega uma história de luta. Semianalfabeto, ele diz que aprendeu a ler com a ajuda da esposa e que agora começa a ensaiar as primeiras palavras escritas. Ele já morou nas ruas, trabalhou na roça e atuou por duas décadas como servente de pedreiro. Há alguns anos, sem conseguir emprego, teve a ideia de passar a comprar e vender móveis usados. Porém, em pouco tempo, descobriu que os fretes cobrados pelos carretos profissionais consumiriam quase 60% dos valores negociados pelos móveis.
“Eu tinha que dar um jeito. Se eu tivesse que ficar pagando pela entrega, eu não ganharia dinheiro e minha família passaria ainda mais necessidade. Foi quando decidi que ia carregar tudo em cima da moto”, contou ao UOL.
Ao longo dos anos, Silva foi testando a capacidade de sua moto. Primeiro ele carregava objetos menores, como televisões e antenas parabólicas. Depois, percebeu que a moto suportava pesos maiores.
A partir daí, comecei a levar fogões, geladeiras, guarda-roupas e máquinas de lavar. Não tem tempo ruim para mim. O importante é trabalhar honestamente e conseguir sustentar minha família”.
Nem mesmo o surgimento de uma hérnia inguinal o fez parar. Ele tenta há anos resolver o problema, mas afirma que não consegue marcar um procedimento cirúrgico nos postos médicos em sua região. “Me disseram que pode arrebentar se eu pegar peso e que eu posso até morrer de repente por causa disso. Eu quero operar, mas não consigo. Enquanto isso, continuo carregando peso. Não tenho escolha”.
Silva cobra, em média, entre R$ 10 e R$ 30 por cada transporte, dependendo da distância. Mas, como na cidade em que vive muita gente está em situação financeira crítica, alguns transportes acabam não sendo pagos.
Como consequência, ele está enfrentando dificuldades financeiras e sequer consegue consertar sua moto, que está com o banco quebrado e problemas na partida. Ele ainda consegue, com muito esforço, ligar o motor, mas não sabe até quando o veículo vai aguentar. O pneu traseiro, que furou recentemente, foi comprado em vezes e Silva só conseguiu pagar uma parte até agora.
“Meu sonho era ter um carrinho com caçamba atrás, tipo uma Fiorino ou algo assim, mas eu não estou conseguindo consertar nem a moto, quem dirá comprar um carro, mesmo usado. Eu tenho até vergonha de dizer, mas se alguém pudesse me ajudar pelo menos a consertar a moto, ficaria muito agradecido. Uma vez quiseram fazer vaquinha online para me ajudar, mas queriam cobrar 40% pelo que eu conseguisse. Queriam lucrar em cima. Mas eu sou honesto, não aceito esse tipo de maracutaia”.
Risco e precaução
Questionado se considera o tipo de transporte que realiza perigoso, ele diz que não e afirma que toma muitas precauções quando carrega as mercadorias e que só usa estradas de terra, por onde “só jumento passa”. Quando tem que pegar uma estrada asfaltada, o que segundo ele acontece muito raramente, ele só o faz em dias e horários em que sabe que o tráfego de veículos é menor.
Cariús é uma cidade muito afastada. É um carro ou outro passando na semana. Em 16 anos trabalhando com a Biz, eu nunca sofri um acidente. As autoridades daqui me conhecem, acabei me tornando conhecido na região. Todos sabem que eu sou muito honesto e responsável”.
O que diz a legislação
Segundo o advogado cearense Lucas Pinheiro, especialista em Direito de Trânsito, a legislação brasileira prevê uma série de restrições quanto ao transporte de cargas e mercadorias sobre motocicletas. Porém, ele acredita que nas regiões mais afastadas do estado, principalmente no sertão, é possível ocorrer uma “flexibilização” maior da fiscalização.
“Aqui no Ceará, principalmente no interior, é costume do pessoal levar sofá em cima de uma moto, é algo bem corriqueiro. Porém, à luz do Código Brasileiro de Trânsito, essa não seria uma atitude correta. A lei prevê, por exemplo, um tamanho máximo para o que pode ser levado em cima de uma moto. E, se for levado, tem que ser em um baú, uma grelha, ou aquelas bolsas laterais, destinadas para cargas. Além disso, o transporte em motos precisa de autorização das autoridades locais para se regularizar o serviço de frete”.
Jumentos e motocicletas
Pinheiro acredita que as mudanças na legislação estadual, ao proibir o uso de animais no transporte de cargas, no caso os jumentos, pode ter contribuído para que a população passasse a enxergar as motos como substitutas dos animais. O que antes era carregado em carroças colocadas no lombo dos jegues passou a ser levado em cima dos bancos das motos.
Apesar de entender que a flexibilização da fiscalização no sertão é uma possibilidade, o advogado alerta que, caso um condutor seja flagrado carregando objetos de tamanho inadequado ou sem licença para transportar mercadorias com a moto, estará sujeito a sanções, como a apreensão do veículo, multa de R$ 195,23 e a perda de cinco pontos na carteira.
“No campo ideal das coisas, no ordenamento jurídico, é obrigação das autoridades de trânsito zelarem pela vida do condutor e minimizarem os riscos a terceiros. Mas existe o mundo real e ele é completamente diferente do que dizem as nossas leis”, declara Pinheiro.
“O mundo real é aquela pessoa que vai se colocar no meio da piçarra do sertão, o sol matando, levando uma geladeira nas costas. Se as autoridades são tolerantes, o que não é o correto do ponto de vista do ordenamento jurídico, é porque devem de alguma maneira avaliar que, apesar dos riscos possíveis, essa pessoa está preenchendo um espaço que o Estado não consegue acautelar”.
UOL