Um engenheiro contratado pelo Flamengo para fazer um laudo independente acusa o clube de adulterar a cena do incêndio no Ninho do Urubu.
Em entrevista exclusiva, José Augusto Bezerra diz que o CEO do Flamengo, Reinaldo Belotti, mandou um funcionário arrancar partes de uma instalação elétrica problemática enquanto a apuração das causas do acidente ainda acontecia.
“Compromete o resultado da perícia da polícia. É decisivo”, afirma Bezerra ao UOL.
O incêndio em um conjunto de contêineres-dormitórios no CT do Flamengo matou dez meninos da base do clube, em 8 de fevereiro de 2019.
O resultado final da perícia da polícia culpou um defeito no ar-condicionado e o material inflamável das paredes dos contêineres pela tragédia.
O UOL teve acesso ao laudo de Bezerra, que, além do ar, aponta a “má instalação elétrica” do alojamento como uma das causas do incêndio.
O Flamengo trata o laudo como “documentação elaborada unilateralmente pela empresa”. E afirma que Bezerra vazou informações “cobertas por sigilo contratual” para influenciar a disputa que trava com o clube na Justiça por outro motivo.
Em março de 2020, o engenheiro processou o Flamengo por quebra de contrato de um serviço posterior ao laudo. Na ação, ele alega que o clube rescindiu com sua empresa depois que ela se negou a pagar uma “mesada” a uma pessoa que se dizia ligada à diretoria.
O Rubro-negro diz que o serviço não foi feito e pede de volta o dinheiro que pagou. Além disso, interpelou Bezerra criminalmente para apontar quem lhe pediu propina -o que até hoje não foi revelado.
Quem é José Augusto Bezerra? Engenheiro eletricista, sócio da Anexa Energia, Bezerra diz que foi chamado pelo Flamengo para fazer um laudo independente sobre o incêndio no Ninho do Urubu ainda no dia 8 de fevereiro, data da tragédia.
Ele conta que começou a trabalhar no local no dia seguinte e que foi em 10 de fevereiro que viu o CEO do clube dar a ordem para arrancar fios e um disjuntor que implicariam o Flamengo na investigação por negligência com a segurança do CT.
Bezerra forneceu ao UOL fotos do antes e depois do episódio para sustentar a denúncia.
O Flamengo nega as acusações. Em comunicado enviado ao UOL, afirma:
Jamais o Senhor Reinaldo Belotti pediu a quem quer que fosse para adulterar a cena do local do incêndio, o que seria inútil haja vista a consumação imediata da perícia, logo após ao incêndio, bem antes dessa empresa e seu sócio surgirem no cenário.
O clube também sustenta que “não há, em toda a vasta documentação produzida pelas autoridades públicas, qualquer elemento de prova que indique ou confirme a acusação leviana e caluniosa feita por esse senhor [Bezerra]”.
Afinal, quantos dias durou a perícia do incêndio?
Procurada pelo UOL, a Polícia Civil corrobora a informação do Flamengo. Diz que iniciou às 9h30 do dia do incêndio a coleta de provas periciais e concluiu-a no mesmo dia. A remoção de fios e disjuntor, em data posterior, não teria atrapalhado o trabalho dos peritos.
Bezerra insiste que, nos dias em que esteve lá, viu policiais trabalhando na cena. Em reportagem publicada em 14 de fevereiro, policiais ainda periciavam o local.
Em depoimento à CPI do incêndio no Ninho, na Alerj, Victor Satiro de Medeiros, um dos peritos que assina o laudo final da polícia, também dá uma versão destoante:
“A gente ficou uns 15 a 20 dias trabalhando no local, em seis pessoas.”
O UOL recorreu ao perito Nelson Massini para analisar as denúncias. Diz o perito:
Causa muita estranheza a velocidade com que essa perícia foi realizada. Trata-se de um ambiente muito complexo, com uma série de itens para serem examinados. E a perícia foi realizada em apenas 8 horas. Pode-se dizer que foi de maneira muito apressada.
Para Massini, a remoção de fios relatada por Bezerra é “fato grave, que pode ter alterado o local dos fatos e levado a possível erro na apuração da polícia técnica científica”.
O delegado Márcio Petra, responsável pela condução do inquérito do caso à época, mostrou-se surpreso ao ser informado pelo UOL do relato de Bezerra.
“Esses fatos (…) traduzem, em tese, a prática de um crime, que deve ser apurado, caso a testemunha citada declare, desta forma, em sede policial, ministerial ou judicial. Somente o perito poderia avaliar essa hipótese em cotejo com os demais elementos colacionados aos autos”, declarou Petra em mensagem à reportagem.
A culpa foi do ar
Athila Paixão, Arthur Vinícius de Barros Silva Freitas, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Gedson Santos, Jorge Eduardo Santos, Pablo Henrique da Silva Matos, Rykelmo de Souza Vianna, Samuel Thomas Rosa e Vitor Isaías, jogadores da base do Flamengo com idades entre 12 a 15 anos, morreram no incêndio que transformou os seis contêineres que serviam como quartos em um grande forno.
A tragédia teve 16 sobreviventes. Três ainda atuam no Rubro-negro: o goleiro Francisco Dyogo, o volante Rayan Lucas e o zagueiro Johnata Ventura, que teve 35% do corpo queimado e voltou aos gramados mais de dois anos após o ocorrido.
Desde as primeiras horas, a versão preliminar para o incêndio —classificado ainda naquela manhã como “a maior tragédia da história do Flamengo” pelo presidente do clube, Rodolfo Landim— era a de que ele havia sido provocado pelo mau funcionamento de um ar-condicionado instalado em um dos contêineres.
O motivo coincide com o apontado na conclusão do laudo dos peritos da Polícia Civil, que embasou o indiciamento de oito pessoas, entre dirigentes do Flamengo, executivos da empresa que fornecia os contêineres-dormitórios para o clube e um técnico de refrigeração.
O que diz a versão oficial:
Na história contada a seguir, o engenheiro José Augusto Bezerra afirma que tais detalhes não poderiam ser ignorados.
“Arranca isso tudo”. O que o engenheiro diz que viu e ouviu
José Augusto Bezerra teve diversas conversas com a reportagem do UOL ao longo dos últimos meses para explicar suas denúncias.
O engenheiro relata que, na tarde de 8 de fevereiro de 2019, ainda digeria as notícias sobre o incêndio no Ninho quando seu celular tocou.
Era Reinaldo Belloti, CEO do Flamengo. Rubro-negro daqueles que carregam o escudo do clube na capinha do celular, Bezerra se surpreendeu.
“Ele sabia o meu nome, conhecia a minha empresa e falou: ‘Olha, você foi indicado para vir aqui no Flamengo fazer o laudo do acidente. A gente precisa de um laudo particular’.”
O CEO tinha urgência. Recebeu o engenheiro no Ninho do Urubu já na manhã seguinte, ainda diante dos escombros do que tinha restado do alojamento após o incêndio.
“Cara, conforme você for vendo, o que achar de muito grave você me chama”, disse Belotti, ainda segundo Bezerra.
“A área estava isolada, com fitas, com tudo. Mas, por trás, tinha uma porta que não tinha fita, não estava isolada. Então eu entrei por lá”, relata.
O engenheiro conta que passou a manhã e a tarde vistoriando o local. Tirou centenas de fotos e fez anotações. No dia seguinte, voltou para tentar esclarecer algumas dúvidas sobre as imagens que tirou atrás do alojamento.
“Tinha uma caixa de alvenaria, a caixa de distribuição de energia. Tinha um disjuntor ali que estava completamente mal dimensionado, completamente errado.”
Na sequência, Bezerra notou uma fiação que saía desse disjuntor e levava energia para os contêineres pelo forro do alojamento.
Os fios estavam fora do padrão, desprotegidos e com emendas aparentes, denuncia:
“O cabo era errado. O disjuntor era errado. Estava tudo errado. Aí eu chamei o Reinaldo e falei: ‘Isso aqui é uma coisa muito grave’.”
A reação de Belotti foi imediata, conta o engenheiro:
Ele chamou um cara lá, um funcionário. Mostrei onde estava o disjuntor, inclusive com os fios ainda estavam todos queimados entrando dentro do alojamento. E aí ele [Belotti] falou: ‘Arranca isso tudo’.
Bezerra diz que viu os fios que ligavam a caixa de distribuição ao contêiner sendo arrancados, mas que não fez nada. “Eu não coloquei a mão em nada. Não comentei nada também porque ali eu sou a parte mais fraca.”
“Tipo, óbvio, tenho 41 anos de idade, não sou bobo. Ele quis apagar algumas coisas.”
Bezerra forneceu as fotos abaixo à reportagem para indicar o antes e depois do episódio narrado.
Disjuntores, falhas e as histórias que as cinzas contam
Ao aceitar a encomenda do Flamengo para realizar um parecer técnico independente, José Augusto diz ter colocado uma condição: pediu a Reinaldo Belotti acesso irrestrito ao local, a funcionários, às plantas e à documentação do CT. Recebeu carta branca.
“É um trabalho de formiguinha. Eu gosto muito de sentar e ficar olhando tudo, observando como aconteceu. O que sobrou do incêndio vai te contar uma história.”
O laudo de Bezerra, concluído em 20 de março de 2019, aponta que o ar-condicionado com defeito e as paredes dos contêineres não foram as únicas causas do incêndio.
A análise do engenheiro menciona problemas nas instalações elétricas do CT, detectados pelo menos um ano antes da tragédia.
Em sua apuração interna, Bezerra soube que, em maio de 2018, ainda durante a gestão de Eduardo Bandeira de Mello na presidência, o Flamengo contratou uma empresa chamada CBI para fazer a manutenção. Esse serviço incluía troca de disjuntores e eliminação de “gambiarras” —o termo consta no orçamento do reparo.
A proposta da CBI foi aprovada e paga pelo clube, como demonstram notas fiscais obtidas pela reportagem. Mas o trabalho não foi realizado.
“Praticamente um ano depois, em 8 de fevereiro do ano seguinte, 2019, o acidente é causado por essa falta de manutenção. O Flamengo pagou à CBI para fazer as manutenções, e a CBI nunca encostou em nada. Eles receberam pagamento com nota fiscal, com depósito em conta”, afirmou.
A reportagem do UOL não conseguiu contato em nenhum dos telefones da CBI.
Seis aparelhos de ar-condicionado refrigeravam os quartos dos meninos no Ninho. A cada um deles correspondia um disjuntor de 20 amperes no quadro de força que ficava dentro da habitação.
O disjuntor é um dispositivo de segurança que serve para cortar imediatamente a energia ao detectar sobrecarga ou superaquecimento na rede elétrica.
Esses disjuntores estavam superdimensionados, indica Bezerra: em vez de 20 amperes, deveriam ser de 13 amperes. Ainda mais grave, diz o engenheiro, seria a situação dos disjuntores do lado de fora do alojamento, que eram de 125 amperes, quando deveriam ser de 60 amperes —quanto maior é o valor, maior é a intensidade de corrente que o dispositivo permite passar sem entrar em ação.
Na prática, isso significa que os disjuntores “não perceberiam” os fios se aquecendo e não seriam acionados para interromper a corrente elétrica no caso de sobrecarga.
No caso de um defeito no ar-condicionado, o aparelho começa a puxar muita corrente elétrica da tomada e continua funcionando até pegar fogo.
Se houvesse algum problema dentro do alojamento, aquele disjuntor não estaria ali para proteger. Seria a mesma coisa que se houvesse algum problema no alojamento e não tivesse um monitor tomando conta. Esse disjuntor não estava tomando conta da instalação elétrica do alojamento?
José Augusto Bezerra, engenheiro eletricista
Bezerra x Flamengo:a briga do engenheiro e o clube na Justiça
José Augusto Bezerra não sabe dizer como o seu nome chegou ao Flamengo até receber a ligação do CEO para fazer um laudo paralelo do incêndio no Ninho.
Conta apenas que a competência de sua empresa era reconhecida no meio do futebol e apresenta um atestado de capacidade técnica do Comitê da Copa do Mundo Sub-17, da Fifa, datado de dezembro de 2019, para demonstrar que foi bem avaliado em uma manutenção elétrica preventiva nos estádios.
Já o Flamengo, em resposta a esta reportagem, classifica Bezerra como uma pessoa que “não possui qualquer credibilidade”, “que foi descartada pelo clube, diante da incapacidade técnica de sua empresa na realização do serviço para o qual foi contratada”.
Quando afirma isso, o clube não se refere ao laudo particular, que foi encomendado e pago em duas parcelas de R$ 6 mil, ainda em março de 2019, como indicam notas fiscais apresentadas por Bezerra à reportagem.
A briga judicial entre o Flamengo e a Anexa Energia, empresa de José Augusto Bezerra, começa um ano depois, em março de 2020.
Após a realização do laudo sobre o incêndio, em junho de 2019, o Flamengo contratou a Anexa para realizar serviços de revisão e adequação da parte elétrica de todo o CT do Ninho, por R$ 106,3 mil, em 4 parcelas. O prazo para conclusão era de 4 meses.
No final de julho, houve a proposta de um aditivo no valor de R$ 443,7 mil e a extensão do prazo dos serviços para 12 meses.
O UOL teve acesso a e-mails, cópias do contrato e a proposta de aditivo que estão anexados aos autos do processo, na 6ª Vara Cível, do Rio de Janeiro.
Há também a ata de uma reunião, realizada em 24 de setembro de 2019, que aponta que alguns dos serviços mencionados no contrato inicial ainda não haviam sido cumpridos.
O que acontece depois dessa reunião é o que motiva a disputa entre as partes até hoje.
Em 5 de dezembro daquele ano, o Flamengo enviou uma notificação judicial à Anexa comunicando a rescisão do contrato com a empresa de Bezerra, alegando que ela “sequer iniciou a prestação do serviço” e pedindo a devolução de 3 de 4 parcelas pagas.
A Anexa reagiu com a abertura de um processo contra o Flamengo acusando o clube de “desligamento sem justa causa”. No processo, o advogado da empresa sugere que a rescisão se deu porque Bezerra recusou uma “mesada” supostamente pedida por uma pessoa ligada à diretoria do Flamengo.
Embora o processo da Anexa corra na esfera cível, o Flamengo respondeu à acusação de pedido de propina no âmbito criminal, interpelando José Augusto Bezerra para que apresentasse provas e o nome da pessoa que teria solicitado a tal mesada.
Até o momento, Bezerra não revelou nenhum nome. Seu advogado acusa o Flamengo de tentar intimidá-lo ao levar o caso para a Justiça criminal. No total, entre indenizações materiais e morais, eles pedem R$ 587 mil ao clube.
Em outubro de 2022, a Anexa reforçou na Justiça pedido de produção de provas antecipadas no CT. A empresa alega que o Flamengo está demolindo parte das instalações do CT sem autorização da Prefeitura do RJ e que isso pode impedir a confirmação da execução dos serviços que diz ter realizado até a quebra do contrato.
UOL