Foto: Sergio Lima/Poder 360.
Quase dois meses após a posse presidencial, o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se transformou em uma “usina de ruídos” na economia, com declarações populistas e sinais contraditórios ao mercado, ao contrário do que aconteceu na primeira gestão do petista, entre 2003 e 2006. A avaliação é da economista Zeina Latif, que vê o presidente da República governando “com o fígado” e mais preocupado em agradar à militância do que em levar adiante uma prometida agenda de reformas.
Em entrevista ao Metrópoles, Zeina Latif, de 55 anos, lamenta a retórica agressiva de Lula e do PT contra o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, e avalia que o governo “está colocando a culpa no remédio”, os juros, em vez de enfrentar a “doença” da inflação.
“Por tudo isso, o governo acaba sendo uma usina de ruídos. Lula me parece um presidente que governa muito com o fígado, com esses ataques ao BC, questionando coisas que estão funcionando e não deveriam ser mexidas agora”, diz Latif. “Obviamente, isso é fonte de ruído e ocupa espaço que deveria ser preenchido com a discussão de outros temas. No fundo, esses ataques acontecem justamente porque não há uma agenda consolidada.”
Segundo a ex-economista-chefe da XP Investimentos e ex-secretária de Desenvolvimento Econômico do estado de São Paulo, “o projeto do PT não se sustenta ao longo do tempo”. “Aumentar gastos e o intervencionismo estatal não é um projeto sustentável. Cedo ou tarde, é necessário um freio de arrumação. Quando Lula se posiciona sobre a economia, seja pelo que fala ou pelo que deixa de falar, gera ruídos”, constata.
Leia os principais trechos da entrevista de Zeina Latif ao Metrópoles:
Após quase 2 meses do governo Lula, os sinais emitidos em relação à economia tranquilizam ou preocupam o mercado?
Na campanha eleitoral do ano passado, ao contrário do que era esperado, a economia não teve tanta importância no debate. Não se discutiu um projeto econômico para o país. Não que se esperasse algo muito profundo, mas a questão econômica ficou muito de fora, em parte porque o próprio ano acabou surpreendendo positivamente na economia. Além disso, muitas políticas conduzidas pelo governo de (Jair) Bolsonaro tiveram o apoio do PT, como a PEC Kamikaze, aquela do Auxílio Brasil, que não teve oposição. A impressão que me dá é que o Lula foi tratar da política e da governabilidade. O PT tem um projeto, tem seus planos e suas convicções. O problema é que o projeto do PT não se sustenta ao longo do tempo. Aumentar gastos e o intervencionismo estatal não é um projeto sustentável. Cedo ou tarde, é necessário um freio de arrumação. Quando Lula se posiciona sobre a economia, seja pelo que fala ou pelo que deixa de falar, gera ruídos. Por exemplo, o compromisso com as contas públicas. Há um esforço do time econômico do governo de trazer uma proposta, mas a percepção é que a palavra final é do Lula. É difícil imaginar o time econômico com voz ativa, como aconteceu na época do (Antonio) Palocci (ministro da Fazenda de Lula entre 2003 e 2006). Hoje não há essa autonomia. Está tudo muito concentrado no presidente. Além disso, vemos uma influência muito forte do PT, com falas da Gleisi Hoffmann como se ela fosse integrante do governo. Isso, definitivamente, não é adequado. Durante a campanha, falou-se em governar para todos, da importância de ceder espaço para os aliados, em diálogo, mas no final o que prevalece sempre é a posição do PT. Por tudo isso, o governo acaba sendo uma usina de ruídos. Lula me parece um presidente que governa muito com o fígado, com esses ataques ao BC, questionando coisas que estão funcionando e não deveriam ser mexidas agora. Obviamente, isso é fonte de ruído e ocupa espaço que deveria ser preenchido com a discussão de outros temas. No fundo, esses ataques acontecem justamente porque não há uma agenda consolidada.
Lula liderou essa ofensiva do governo contra o presidente do BC, Roberto Campos Neto, por causa da taxa Selic em 13,75% ao ano. Afinal, a taxa de juros é a causa de todos os males?
É claro que a alta dos juros tem as suas consequências e é para isso que serve a política monetária. Ela tem a função de desacelerar a economia para conter uma inflação muito elevada. Agora, o fato de os juros terem essas consequências não quer dizer que eles sejam os culpados. Os juros são o remédio. O governo está colocando a culpa no remédio. O foco deveria ser a doença! Para piorar, quando você ataca o remédio, a eficácia dele fica reduzida. Diante desses ruídos todos, corremos o risco de a economia sofrer mais ainda e sem o benefício da queda da inflação. Por um lado, diminui a confiança dos empresários e, por outro, pioram as expectativas inflacionárias. É o pior dos mundos. Até sob o ponto de vista político, em tese, é muito bom para o Lula ter um BC conservador agora. Que ótimo seria para o governo o Roberto Campos Neto fazendo o “trabalho sujo”, mantendo os juros altos e, mais tarde, vem um próximo presidente do BC, indicado pelo Lula, com a agenda de cortar juros, já com a inflação bem comportada. Esses ataques, até em termos da economia política, não fazem nenhum sentido.
O ministro Fernando Haddad anunciou que o governo deve apresentar a proposta do novo arcabouço fiscal em março. Acabar com o teto de gastos é bom ou mau negócio?
Eu gostaria que o teto de gastos fosse mantido. O teto tem flexibilidade para ser utilizado em situações extremas. É importante termos uma regra simples, que seja facilmente monitorada pelas instituições democráticas e pela sociedade. Se for uma regra muito complexa, de difícil monitoramento, você não consegue gerar muita credibilidade e dar a devida previsibilidade para os agentes econômicos. Eu penso que a regra do teto está adequada para o Brasil. O problema é que ela foi mal administrada. Na pandemia, houve um período de calamidade, por uma questão de segurança jurídica, e se estabeleceu que não haveria limite para os gastos associados à Covid-19 durante esse período. Esse prazo venceria no fim de 2020, mas quem disse que a Covid teria data para terminar? Se tivesse sido feito algo mais flexível naquele momento, seria melhor – e era possível flexibilizar. O que aconteceu é que, naquele ano de 2020, se gastou loucamente. Gastamos como se fôssemos um país rico. Era nítido que havia excessos. O Congresso renovou os R$ 600 (do Auxílio Brasil) e não discutiu se aquilo era adequado. Houve excesso no uso da cláusula de escape da regra do teto em 2020 e depois tivemos as PECs (Propostas de Emenda Constitucional) fura-teto, que abriram a porteira para outros gastos oportunistas. O sinal foi péssimo e mostrou um país que facilmente muda a Constituição para gastar mais. De fato, não houve uma boa administração da regra do teto. Poderia ter sido feito com mais cuidado, evitando esses furos. É uma boa regra que, ao ser mal utilizada, acabou se enfraquecendo.
Qual seria a regra ideal?
Regra ideal não vai ter, assim como não existe um sistema tributário perfeito. A verdade é que você pode ter a regra que for. Se não há um governo comprometido com a responsabilidade fiscal, qualquer que seja a regra não dará certo. Fica aquela coisa: a regra é do governo (Michel) Temer, não do meu governo, então vamos mudar. Mas essa é uma decisão que tem custos. Você precisa de maior flexibilidade para gastos, mas entenda que haverá custos. Qualquer regra que vier agora já nascerá com baixa credibilidade. Se um país adota uma regra diferente a cada hora, a que vem em seguida já nasce desacreditada. Hoje o Lula faz essa, talvez o próximo presidente não ache boa e faça uma nova regra… Se você quer que um desenho institucional traga os efeitos desejados, ele precisa funcionar todo dia. É preciso cumprir a regra todos os dias. Agora vai se gastar energia para discutir uma nova regra, sendo que já temos uma adequada para o momento. Na boa intenção, é capaz de fazerem uma regra de pior qualidade.
A reforma tributária é considerada uma das prioridades do governo neste primeiro ano. É possível aprová-la no Congresso ainda em 2023?
Acho factível. O meu medo é que ela venha muito aquém do que a gente gostaria, cheia de exceções. Entre os governadores, existe praticamente um consenso em torno da necessidade da reforma. Há muito tempo, existe o diagnóstico de que o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) é um imposto que caducou e não está adequado para a estrutura produtiva do país hoje, que é mais forte em serviços. Apesar de a arrecadação do ICMS ter subido muito no pós-pandemia por causa dos estímulos dados pelo governo federal, a tendência dela é perder fôlego. Quando o Bolsonaro reduziu, na canetada, o ICMS para combustíveis e energia, aumentou ainda mais a convicção dos governadores de que a reforma é necessária. É um desenho que considero interessante, em que você muda o sistema tributário, mas com uma regra de transição lenta para os estados. Os municípios, em sua maioria, terão ganhos, porque haverá um ICMS amplo e os municípios terão as devidas transferências. Por tudo isso, a reforma tem boas chances de avançar. Agora, ainda temos arestas importantes que dependem do empenho do governo para ser aparadas. Há vários setores sensíveis. Não temos ainda a segurança de que virá um regime com uma só alíquota para todos os setores, que seria o melhor desenho. O ideal seria um imposto único, uma alíquota só. Eu não sei qual será, de fato, o empenho do governo nessas negociações. Não é o Congresso, sozinho, que vai conseguir tocar isso. Tem de ter o compromisso do governo e a gente não vê o Lula falando de reforma tributária, o que é preocupante.
No ano passado, você lançou o livro “Nós do Brasil: Nossa Herança e Nossas Escolhas”. Quais são os nós que, historicamente, travam o crescimento do país?
A base de como nasceu o país tem influência naquilo que somos, mas nós também fomos cometendo os nossos erros. O pecado original é a questão da educação. Demos atenção para esse tema de forma tardia. O descuido com a educação tem correlação com o período prolongado de escravidão e o descaso que houve após a abolição, diferentemente dos Estados Unidos, que têm racismo, mas cuidaram da educação. Isso diz muito sobre a qualidade da nossa elite. Esse erro impactou não apenas na qualidade de mão de obra, no capital humano, mas também no capital social. Estamos falando de indivíduos que não exercem plenamente sua cidadania, o que compromete o avanço do debate público. O ponto é que continuamos errando até hoje. Cuidamos da universalização do ensino, mas, na prática, vemos muitas crianças que entram na escola sem o devido cuidado das creches na primeira infância. Tornam-se jovens completamente despreparados para o ensino médio, que também é de baixa qualidade. Quem termina essa etapa na idade certa não sai preparado para a vida e a empregabilidade fica comprometida. O mercado está cada vez mais exigente e temos uma parcela da população que fica à margem do trabalho.
Créditos: Metrópoles.