Foto: Sérgio Lima
A presunção da “boa-fé” no comércio de ouro, apontada como determinante para o avanço do garimpo ilegal, é de autoria de um deputado federal do PT e foi sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff.
Hoje, a exploração do metal precioso em terras indígenas é um dos maiores desafios enfrentado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no início do terceiro mandato, diante da crise dos yanomamis.
O deputado Odair Cunha (PT-MG) é autor da emenda que estabeleceu a presunção da “boa-fé”, via lei nº 12.844, de 2013. O texto original, no qual essa emenda foi incluída, era uma medida provisória (MP) que tratava de seguro agrícola, tema sem nenhuma relação com a extração mineral.
Isso faz da emenda de Cunha um jabuti, no jargão parlamentar. A presidente chancelou sem vetar.
A alteração do deputado determinou que basta a palavra do vendedor do minério para atestar que a origem do ouro é legal. O comprador presume que ele diz a verdade, e não será punido se um dia for comprovado o contrário.
Na prática, porém, a lei nº 12.844 limita a fiscalização, pelo Banco Central, de instituições financeiras credenciadas a operar com ouro, as DTVMs (Distribuidora de títulos e Valores Mobiliários). Também compromete a punição criminal desses estabelecimentos, caso uma investigação comprove que o ouro saiu de uma reserva ambiental, por exemplo.
Em ambos casos, a DTVM sempre pode argumentar que não é obrigada a verificar se o vendedor está mentindo.
Diferentes organismos preocupados com o combate ao garimpo ilegal consideram essa presunção de boa-fé o principal instrumento para “esquentar” o ouro ilícito no Brasil. Para derrubá-lo, há iniciativas no Congresso e no STF (Supremo Tribunal Federal).
Levantamento feito pelo Instituto Escolhas aponta indícios de ilegalidade na venda de mais de 200 toneladas de ouro extraído no país, de 2015 a 2020, amparada pelo instrumento da boa-fé, como relata o economista Marcos Lisboa, no artigo “Uma história de ouro e sangue”, publicado na Folha.
Autor da emenda, Cunha diz que fiscalização falha, que se expandiu no governo Jair Bolsonaro (2019-2022), desvirtuou o objetivo da proposta. Cunha afirma defender um novo marco para o garimpo, capaz de garantir o monitoramento da extração de ouro e coibir ilegalidades, danos ao ambiente e aos indígenas.
O petista foi secretário de Estado no governo de Fernando Pimentel, em Minas Gerais, e acaba de se reeleger para o sexto mandato como deputado federal pelo estado. Ficou mais conhecido quando foi relator da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito ) que investigou suspeita de transações ilícitas entre agentes públicos e privados e o empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira.
Não chega a ser um nome associado ao garimpo, como outros parlamentares. No entanto, foi escalado para o grupo de transição de Minas e Energia e se empenhou na mudança na lei de garimpo. Fez mais de uma tentativa para flexibilizar a legislação dessa atividade antes de conseguir emplacar a emenda da boa-fé.
Foi autor do projeto de lei nº 6.700/09, que propunha descriminalizar a exploração de ouro sem autorização legal quando o metal fosse destinado ao mercado financeiro, nas operações de instituições financeiras autorizadas pelo BC.
O deputado argumentava que a atividade encontrava limitações burocráticas desde a promulgação da lei nº 11.685/08, batizada de Estatuto do Garimpeiro. O novo marco passou a exigir a apresentação da PLG (Permissão de Lavra Garimpeira) tanto para extrair quanto para vender o ouro, mas a liberação do documento era lenta e estava travando o setor.
Cunha declarava, na época, não ser razoável que toda a cadeia do ouro ficasse, do dia para a noite, à margem da lei. Com a exceção, afirmava, seria possível agilizar a exploração e garantir que esse ouro fosse comercializado no Brasil, e não contrabandeado.
O projeto, no entanto, não andou.
O bloco de artigos que estabeleceu a presunção da boa-fé exigiu persistência do parlamentar. Segundo consta do documento de protocolo da emenda, seu conteúdo já havia sido apresentado dentro de outra proposta, passou na Câmara, mas foi eliminado no Senado.
No fim, a emenda dedicada ao garimpo, encontrou abrigo na MP 619, apresentada durante o governo Dilma. Passou a compor o bloco dos artigos 37 a 41 da lei nº 12.844.
O artigo 39 diz, no parágrafo 3º: “É de responsabilidade do vendedor a veracidade das informações por ele prestadas no ato da compra e venda do ouro”.
E segue no parágrafo 4º: “Presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente quando as informações mencionadas neste artigo, prestadas pelo vendedor, estiverem devidamente arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada a realizar a compra de ouro”.
No Congresso, a então deputada Joênia Wapichana (Rede-RR) apresentou em agosto do ano passado o projeto de lei nº 2159/2022, recebendo apoio de outras parlamentares. Além de acabar com a boa-fé, a proposta estabelece os princípios para a criação da rastreabilidade do ouro. Joênia não se reelegeu, mas se tornou, no Lula 3, a primeira mulher indígena a comandar a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
Sua proposta segue no parlamento, apensada ao PL 5.131/2019.
Partidos recorreram ao STF. O PSB (Partido Socialista Brasileiro) e a Rede Sustentabilidade ajuizaram, em novembro do ano passado, Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a comercialização de ouro de garimpo com base na presunção da boa-fé. No início de fevereiro deste ano, o PV (Partido Verde) fez o mesmo, requerendo ainda que as DTVMs sejam obrigadas a criar mecanismos que garantam a origem do ouro.
Nesta terça-feira (7), para obter mais informações, o ministro do STF Gilmar Mendes intimou o BC e a ANM (Agência Nacional de Mineração) a prestarem depoimentos sobre a situação do garimpo ilegal na Amazônia.
Diferentes entidades também se organizaram para derrubar a medida.
Em julho do ano passado, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, foi alertado sobe os crescentes prejuízos da boa-fé por um grupo que incluiu representantes do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), Instituto Ethos, Isa (Instituto Socioambiental) e Instituto Escolhas, que já publicou vários levantamentos sobre as consequências socioambientais e econômicas do garimpo ilegal.
As suspeitas são que um grupo pequeno de apenas cinco DTVMs estaria envolvido na legalização de ouro clandestino, e o fim da presunção da boa-fé abriria caminho para se romper esse ciclo.
Procurado pela reportagem para explicar as consequências de sua emenda, o deputado Odair Cunha afirmou em nota que a sua proposta foi pensada em um contexto totalmente diferente do atual. Em 2013, ele acreditava que o procedimento de presunção da boa-fé seria um elemento a mais para identificar a origem do ouro, contribuindo com a fiscalização dos órgãos públicos.
“Infelizmente, ao longo do período, ocorreram falhas de fiscalização e a criminalidade no setor foi disseminada por estimulo do ex-presidente Jair Bolsonaro, sobretudo em áreas indígenas, com o deliberado desmonte dos órgãos de fiscalização”, afirmou ele na nota.
Cunha diz ainda que, por ser mineiro, tem uma ligação natural com o garimpo, e que por isso se empenhou em contribuir com a legislação do setor.
“A atividade minerária está consignada no nome do meu estado de origem. Não se pode confundir apoio a uma atividade legal, sócio e ambientalmente sustentável com apoio a práticas criminosas”, afirmou Cunha no texto. “Repito: o que ocorreu no governo Bolsonaro foi o desmonte dos órgãos de fiscalização, o que levou ao calamitoso quadro atual”.
O deputado diz ainda que, com base nessa nova realidade, entende que agora é preciso ter um novo marco para o garimpo, capaz de manter a fiscalização rigorosa, garantir o monitoramento da extração de ouro, junto com medidas que coíbam ilegalidades, danos ao meio ambiente e ataques aos povo indígenas, entre outras iniciativas.
“Dez anos depois, levando em conta o sucateamento dos órgãos de fiscalização e o avanço dos meios tecnológicos, é fundamental o aperfeiçoamento dos instrumentos de controle a fim de garantir rastreabilidade do metal”, diz a nota do parlamentar.
“Assim, vamos estudar, no âmbito de nosso mandato e com a assessoria técnica da liderança do partido na Câmara, iniciativas que atualizem o marco legal, inclusive na comissão de reforma do código mineral.”
Procurada, a assessoria de imprensa da ex-presidente Dilma Rousseff não respondeu até a publicação deste texto.
Folha de São Paulo