O nosso intestino é habitado por uma colônia vibrante e florescente, com trilhões de seres de milhares de espécies diferentes.
Muitos desses micro-organismos, incluindo as bactérias, as arqueas e as eucariotas, já existiam muito antes dos seres humanos. Eles evoluíram conosco e, agora, vivem em número muito maior que as nossas próprias células.
De fato, como John Cryan, professor de anatomia e neurociências da Universidade College Cork, na Irlanda, descreveu de forma um tanto surpreendente em uma palestra TEDx: “quando você for ao banheiro e eliminar alguns desses micróbios, pense: você está ficando mais humano”.
Essas legiões de micróbios são conhecidas coletivamente como “microbiota”. Elas exercem uma função bem estabelecida na manutenção da nossa saúde física, da digestão e do metabolismo até a imunidade. Também produzem compostos vitais que o corpo humano é incapaz de fabricar sozinho.
Mas e se elas também tivessem uma ligação com as nossas mentes?
Em um novo livro, Are You Thinking Clearly? 29 Reasons You Aren’t and What to Do About It (“Você está pensando com clareza? 29 razões pelas quais você não está e o que fazer a respeito”, em tradução livre), exploramos as dezenas de fatores internos e externos que afetam e interferem na forma como pensamos – da nossa genética, personalidade e tendências até a tecnologia, publicidade e a linguagem.
E o fato é que os micro-organismos que habitam o corpo humano podem ter controle surpreendente sobre nossos cérebros.
O início das pesquisas
Ao longo das últimas décadas, pesquisadores começaram a encontrar evidências curiosas, convincentes e às vezes controversas que indicam que liberar nutrientes da nossa alimentação para o cérebro não é a única forma em que a microbiota intestinal ajuda a manter nossa cabeça em perfeita ordem e funcionamento. Ela pode ajudar também a moldar os pensamentos e nosso comportamento.
Essas descobertas podem reforçar nossa compreensão e trazer novos tratamentos para uma série de transtornos mentais, como a depressão, a ansiedade e até a esquizofrenia.
O quadro ainda está muito longe de ser completo, mas, em meio à pandemia de covid-19, que prejudicou a saúde mental das pessoas em muitas partes do mundo, resolver este quebra-cabeça pode ser mais importante do que nunca.
Nosso intestino abriga uma coleção de diferentes espécies de bactérias, e algumas delas aparentemente se comunicam com o nosso cérebro — Foto: RODOLFO PARULAN JR/GETTY IMAGES
Uma das histórias que deram origem a este campo de pesquisa ocorreu em uma região de natureza selvagem dos Estados Unidos – e alertamos que sua leitura pode revirar o estômago de algumas pessoas.
O ano era 1822. Um jovem comerciante chamado Alexis St. Martin estava descansando ao lado de um posto comercial no que hoje se conhece como ilha de Mackinac, no atual Estado de Michigan, quando um mosquete disparou acidentalmente ao lado dele. O tiro o atingiu a menos de 90 cm de distância.
O impacto foi tão forte que parte dos pulmões, do estômago e boa parte do café da manhã daquele dia saíram pela perfuração que a bala abriu no lado esquerdo do seu corpo.
A morte parecia certa, mas um cirurgião do exército chamado William Beaumont saiu ao resgate e salvou a vida de St. Martin, depois de quase um ano e diversas cirurgias.
Beaumont não conseguiu, contudo, cicatrizar um buraco que havia se formado no estômago do paciente. A fístula permaneceu como uma herança sombria e perene do acidente.
Como o médico não era de deixar passar uma boa oportunidade, mesmo que desagradável, percebendo que o buraco abria uma janela única para se observar o intestino humano, ele passou anos estudando as complexidades do processo digestivo de St. Martin.
Não se sabe ao certo o grau de disposição do paciente para atuar como voluntário, já que Beaumont o contratou como empregado enquanto conduzia suas pesquisas. Era um acordo obscuro que, com quase total certeza, não seria considerado ético hoje em dia.
De qualquer forma, entre as descobertas feitas pelo profissional durante seus estudos, ele percebeu que o intestino era afetado pelas emoções de St. Martin, como a raiva.
Com esta descoberta, Beaumont – que ficaria conhecido como o “pai da fisiologia gástrica” – teve a ideia de que havia um “eixo entre o intestino e o cérebro”, ou seja, que o cérebro e o intestino não eram totalmente independentes entre si, mas que eles interagiam, com um influenciando o outro e vice-versa.
E, atualmente, sabemos que os micro-organismos do nosso intestino tornam este processo ainda mais complexo e extraordinário.
‘Amigos com benefícios’
“Cada vez mais pesquisas revelam que o microbioma intestinal pode influenciar o cérebro e o comportamento em uma série de animais diferentes”, afirma Elaine Hsiao, professora de fisiologia e biologia integrativa da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos Estados Unidos.
A forma exata como nossa microbiota pode influenciar a mente é um campo ainda relativamente novo, pioneiro e em crescimento. Mas tem havido avanços nos últimos 20 anos, particularmente em animais.
E estão sendo lentamente construídas evidências que indicam que esses micro-organismos não são apenas uma parte vital do nosso corpo físico, mas também de nossas dimensões mental e emocional.
Para John Cryan, “na medicina, nossa tendência é dividir o corpo em compartimentos. Por isso, quando falamos sobre questões do cérebro, costumamos pensar do pescoço para cima”.
“Mas precisamos enquadrar as coisas segundo a evolução. É importante lembrar que os micróbios estavam aqui antes que os seres humanos existissem. Por isso, nós evoluímos com esses ‘amigos com benefícios’. Nunca houve uma época em que o cérebro existisse sem os sinais provenientes dos micróbios.”
“E se esses sinais fossem realmente importantes para definir como nos sentimos, como nos comportamos e como agimos? Será que poderíamos modular esses micróbios de forma terapêutica para melhorar o pensamento, o comportamento e a saúde do cérebro?”, questiona Cryan.
Elaine Hsiao é uma das principais estudiosas deste campo. Seu laboratório na UCLA estudou o papel que esses micro-organismos podem desempenhar em diversos processos, desde o desenvolvimento do cérebro dos fetos até a cognição e condições neurológicas como a epilepsia e a depressão. Ela também investiga como esses micróbios podem influenciar o nosso cérebro e o nosso pensamento.
“Micróbios específicos do intestino podem modular o sistema imunológico de forma a causar impacto sobre o cérebro e também produzir moléculas que sinalizem diretamente aos neurônios para que regulem sua atividade”, explica ela.
“Descobrimos que os micróbios intestinais podem regular o desenvolvimento inicial dos neurônios e gerar impactos duradouros sobre os circuitos cerebrais e o comportamento”, prossegue Hsiao. “Também descobrimos que, em escalas de tempo menores, os micróbios do intestino podem regular a produção de substâncias bioquímicas, como a serotonina, que estimula ativamente a atividade neuronal.”
De fato, pesquisas indicam que nossos micróbios podem comunicar-se com o cérebro por diversos caminhos, desde a imunidade até as substâncias bioquímicas.
Outro candidato é o nervo vago, que age como “conexão de internet” super-rápida entre o nosso cérebro e os órgãos internos, incluindo o intestino.
A bactéria Lactobacillus rhamnosus JB1, por exemplo, aparentemente melhora o ânimo de camundongos ansiosos e deprimidos. Mas este efeito benéfico é eliminado quando os sinais que viajam ao longo do nervo vago são bloqueados, o que sugere que ele pode ser usado como trajeto de comunicação pela bactéria.
Muitas das pesquisas neste campo são realizadas em camundongos e outros pequenos animais. E os camundongos, é claro, não são humanos.