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Na França do início do século XIX, assim que a derrocada do regime de Napoleão Bonaparte permitiu a volta dos Bourbon ao trono que ocupavam antes da Revolução Francesa, uma frase sobre os herdeiros da antiga família real se tornou recorrente no meio político: “Eles não aprenderam nada e também não esqueceram nada”. A expressão, comumente creditada ao gênio da diplomacia Charles-Maurice de Talleyrand, traduz de forma magistral os temores do mundo empresarial e das finanças depois dos anúncios dos primeiros nomes que ocuparão postos-chave na área econômica do futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a partir do dia 1º de janeiro.
A primeira nomeação, na sexta-feira 9, confirmou a ida de Fernando Haddad para o recriado Ministério da Fazenda. Longe de ser uma surpresa, dados os sinais que já apontavam nesse sentido, a indicação não foi exatamente louvada por economistas, empresários e financistas. Entretanto, acabou encarada com alguma naturalidade a partir de declarações tranquilizadoras do futuro ministro em nome da responsabilidade fiscal e com a nomeação, na segunda-feira 12, de dois de seus principais auxiliares — Gabriel Galípolo, ex-presidente do Banco Fator, como secretário-executivo, e Bernard Appy, como secretário especial para a reforma tributária. Não foi uma recepção tão tranquila quanto a de Antonio Palocci na primeira gestão de Lula, em 2002, mas de alguma forma já estava, como se diz no jargão da Faria Lima, precificada.
O golpe veio mesmo na terça-feira 13, quando, em um pronunciamento, o presidente eleito exercitou sua verve em uma mistura de ironia, provocação e alguns traços de rancor. “Aloizio Mercadante, vi algumas críticas sobre você, sobre boatos que você vai ser presidente do BNDES”, começou Lula se dirigindo ao ex-ministro e ex-senador, que estava a seu lado na cerimônia de conclusão dos trabalhos da equipe de transição, em Brasília. “Eu quero dizer para vocês que não é mais boato. O Aloizio Mercadante será presidente do BNDES. Estamos precisando de alguém que pense em desenvolvimento, alguém que pense em reindustrializar esse país”, completou. Com seu pronunciamento, Lula apontou que a estratégia de uso das estatais para irrigar empresas com crédito barato pago pelo Tesouro, diretriz que deu tão errado em gestões passadas do PT, pode voltar. Não bastasse, Lula foi além e reafirmou a convicção estatista que marcará sua volta ao poder: “Vai acabar a privatização nesse país”.
O índice Ibovespa, que no mesmo dia chegou a subir 1% com o tom apaziguador de Haddad, trocou de direção e caiu 1,71%, na contramão do otimismo do resto do mundo, que passava por um momento positivo com a melhora dos números da inflação nos Estados Unidos. O dólar, que estava em queda de 1%, recuperou a perda e fechou em leve baixa. Os números materializavam o fantasma que pairava na praça, de que o atual governo petista se escora mais nos traços da malfadada gestão Dilma 2, com sua desastrosa administração da economia, do que nos anos de Lula 1 e 2, em que o Brasil decolou no cenário global. “Se colocarem em prática as políticas anunciadas até o momento, teremos quatro anos bastante turbulentos e provavelmente uma recessão similar à do governo Dilma”, alerta o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper.
Quem esperava que a cota de temeridades tinha acabado, a noite do dia 13 ainda traria surpresas. Em uma manobra para evitar dificuldades legais à nomeação de Mercadante para o BNDES, o PT e o Congresso armaram uma ofensiva para alterar a Lei das Estatais, de 2016, criada justamente para coibir gestões erráticas e a corrupção nas empresas públicas depois dos abusos nas gestões petistas. Antigo desejo — frustrado — do presidente Jair Bolsonaro, a mudança-relâmpago votada sobre o comando de Arthur Lira reduziu de 36 meses para trinta dias o tempo de quarentena para pessoas com atuação em cargo decisório de partido político ou em campanha eleitoral poderem assumir postos em estatais. Tal alteração se encaixa com precisão à necessidade petista, não apenas no caso de Mercadante mas também de outros dirigentes partidários com potencial de ser indicados para o comando das empresas do governo, como o senador Jean Paul Prates, nome cogitado para o comando da Petrobras.
Com a mexida legal, a estatal petroleira tornou-se a vítima no dia seguinte, 14. Logo que o pregão da B3 abriu, as ações da Petrobras começaram a sangrar e a empresa encerrou o dia com a perda de extraordinários 10%, gerando uma hemorragia de aproximadamente 30 bilhões de reais em seu valor de mercado, a maior desvalorização diária vivida pela companhia desde 1989. Em meio à turbulência, o novo governo partiu para mitigar os estragos. Vazou a informação de que Lula busca mulheres funcionárias de carreira para comandar a Caixa e o Banco do Brasil. Haddad saiu relembrando a sua atuação como prefeito de São Paulo saneando as contas públicas e conseguindo nota de grau de investimentos para a cidade. Também alegou que, quando Lula fala do fim das privatizações, não está mencionando as parcerias público-privadas (PPP), sobre as quais o novo ministro da Fazenda foi o redator da lei que a regula, em sua passagem pelo Ministério do Orçamento, Planejamento e Gestão, há duas décadas. Mercadante, por sua vez, procurou o presidente da Federação Brasileira de Bancos, a Febraban, Isaac Sidney, para dizer que os subsídios do BNDES às grandes empresas não voltarão, uma vez que não há hoje espaço fiscal para recriar a política de campeões nacionais do passado.
O novo governo ainda não começou e há tempo para desfazer a impressão desastrosa das primeiras escolhas para a área econômica. Ainda faltam cargos importantes a ser preenchidos, tanto dentro do Ministério da Fazenda, como para comandar pastas recém-recriadas como as do Planejamento e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Um convite para essa última foi feito ao presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué Gomes, mas ele ainda não havia aceitado até o fechamento desta edição. Bons nomes, como o de Gomes, podem se firmar nessas posições e afastar maiores riscos. Mas se as escolhas recaírem sobre figuras com ligação umbilical com a máquina petista, a debacle vai se concretizar. Mesmo porque a própria equipe de transição consistiu em um grupo plural, incluindo economistas como os criadores do Plano Real, que apoiaram Lula em sua eleição, mas agora tem sido preteridos em benefício de nomes de confiança do partido.
Mesmo com a expectativa de que a linha esboçada nos últimos dias ainda possa ser alterada, a realidade do momento aponta que o discurso de Lula sobre a montagem de um governo fundamentado em uma frente ampla talvez tenha se perdido no passado. Em seu tour de force eleitoral contra o bolsonarismo, o petista granjeou apoio de quinze partidos políticos, em troca da inclusão de uma ampla gama de reivindicações no desenho de seu futuro governo. O que se vê até agora, entretanto, é um projeto de matiz claramente petista. “Se for para termos o governo Dilma 3, no qual só tem PT mandando, com suas propostas bem antigas, não vamos crescer”, avalia o economista José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de política econômica no governo de Fernando Henrique Cardoso. “Precisamos de cautela na avaliação, porque até agora foram cinco ou seis nomes anunciados, de um universo de trinta. Mas é bom lembrar que a orientação filosófica mais geral vem do presidente. A equipe plural até ajuda, mas não resolve o problema.”
A leitura geral é de que a desconfiança com o nome de Haddad no mercado tem pouco a ver com o seu perfil — visto como moderado e bom negociador. A preocupação é que ele venha a se tornar apenas um articulador político para as convicções econômicas ultrapassadas de Lula. “Vários estudos sugerem que o estado gastador e o BNDES pródigo do período entre 2015 e 2016 tiveram relação direta com ascensão dos juros estruturais, que passaram da média habitual de 7% para 10%. Depois de ter baixado nos últimos anos, esse juro estrutural já volta a bater em 9% com as incertezas atuais”, diz Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro Nacional e fundador da gestora Oriz Partners.
Haddad tem defendido a ideia de que pretende fazer os juros caírem, para estimular a economia. Mas muitos dos dogmas econômicos caros ao PT jogam contra isso. Pouco antes de almoçar com o novo ministro na terça-feira, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que segue no cargo nos próximos dois anos, divulgou a ata da última reunião da autoridade monetária para definição da taxa Selic. O texto alerta sobre o fato de que as promessas de gastar mais para reativar a economia podem causar aumentos da inflação, do dólar e dos juros. Ao gastar de forma errada e exagerada, a incerteza dos mercados elevaria o dólar, o consumo estimulado artificialmente pressionaria a inflação, e os juros precisariam subir, causando desemprego e outros problemas econômicos. Ou seja, o PT pode jogar contra os seus próprios objetivos se continuar aferrado aos próprios erros, como seguir o mote “gasto é vida” da época de Dilma Rousseff.
Uma das expectativas em torno do novo governo é como será o arcabouço fiscal a ser instituído por Haddad, uma vez que a PEC da Transição que tramita na Câmara dos Deputados já prevê um gasto de 145 bilhões de reais acima do teto de gastos por dois anos e que um projeto de lei com um novo regime fiscal seja apresentado até agosto do ano que vem. Para os defensores do controle de gastos, é crucial que tal medida seja definida em torno de metas controladas pelo governo federal, portanto relacionadas às despesas públicas. “Não se deve fazer meta em cima de dívida porque o governo federal não controla as taxas de juros pagas pelo Tesouro Nacional. Tentar controlar essas taxas seria completamente inviável e irrealista”, diz Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central no governo Lula, criador da regra do teto fiscal quando ministro da Fazenda no governo de Michel Temer.
Transcorrida apenas uma semana do anúncio de Haddad para a Fazenda, muita coisa pode mudar. No entanto, é motivo de preocupação o fato de os alicerces do novo governo estarem fincados em terreno tão movediço. “Aparentemente, o fracasso da agenda petista de quinze anos atrás, que gerou a grande crise de 2014, foi de pouca valia. Pelos discursos que a gente vê, estamos rumando para um novo fracasso”, alerta Marcos Lisboa, presidente do Insper e ex-secretário de política econômica do Ministério da Fazenda de 2003 a 2005, época da primeira (e bem-sucedida) gestão de Lula. “O problema é que, desta vez, o fracasso vai vir mais rápido do que as pessoas estão imaginando, pois as condições são piores”, avalia. Ainda há tempo e meios para o novo governo evitar tal situação. A questão é se Lula quer fazer isso.
Créditos: VEJA.