Um suplemento alimentar que chegou ao mercado brasileiro em abril promete prevenir a dor de cabeça e o mal-estar associados à ressaca com a ingestão de três comprimidos antes do consumo de álcool.
Segundo a fabricante, cerca de 80 mil pessoas já teriam provado o produto, chamado Novvo, com uma avaliação positiva de 92% dos usuários.
A promessa é semelhante à dos comprimidos da empresa sueca Myrkl (lê-se no inglês “miracle”) vendidos desde julho no Reino Unido. O “milagre” anunciado por lá, que causou euforia ao mercado dos apaixonados por bebidas, é que o produto decomporia até 70% do álcool ingerido em uma hora, bastando tomar duas unidades pelo menos uma hora antes para não sofrer no dia seguinte.
Mas o mecanismo de ação é de cada um é diferente e, nos dois casos, ainda é cedo para falar em eficácia.
O Novvo, da Biotech, é composto de vitamina C, vitamina E, complexo B, L-cisteína e quitosana, explica Rodrigo Hidaka, 40, cofundador da Novvo Bem Estar. Ele vem com uma dose de três comprimidos, que deve ser repetida se a farra durar mais que sete horas.
O empresário conta que o produto foi descoberto por acaso em 2014, quando o sócio, Felipe Rebelatto, percebeu que um suplemento que tomava o ajudava a evitar a ressaca.
“Ele resolveu estudar mais a fundo e, em parceria com cientistas, descobriu a forma de atuação, como uma glucosamina e vitaminas poderiam ajudar o corpo, retirando aldeídos [tóxicos] de nosso sistema circulatório e auxiliando na recuperação do organismo”, relata.
O fabricante defende que a propriedade do pré-drinque Novvo é única e atua na absorção de aldeídos resultantes da quebra da molécula do álcool pelo fígado, diferentemente da pílula do Reino Unido, feita de outros componentes.
Segundo Hidaka, a pílula foi estudada por dois anos, mas o resultado ainda não foi publicado para não atrapalhar o processo de patente. A indicação é para qualquer pessoa acima de 19 anos que não seja lactante ou gestante.
O comprimido é um suplemento alimentar, não um medicamento. “É um produto natural que não precisa ser registrado, sendo necessária a comunicação de fabricação à Anvisa”, diz o empresário.
A agência de vigilância sanitária informou que de fato não existe medicamento registrado com nome Novvo e que a categoria de suplementos alimentares é vista como alimento, devendo os produtores informar e seguir apenas as regras de composição. “Neste caso, o produto não pode fazer alegações terapêuticas”, afirmou o órgão, em nota.
Mesmo não sendo medicamento, especialistas lembram que suplementos, mesmo fitoterápicos, podem causar reações e que o uso excessivo pode desregular da flora natural do corpo até o sistema neural, levando a um maior consumo alcoólico.
O valor de cada dose da Novvo varia de R$ 7,70 a R$ 14,90 no site (no alicativo iFood, com entrega apenas na região central de São Paulo, um pack com três doses custa R$ 30, e o kit com seis packs sai por R$ 156,10).
A ressaca é causada principalmente por desidratação, o que leva à dor de cabeça. Os sintomas, porém, vão além e podem incluir dor de estômago e náusea, o que ocorre pelo contato direto da bebida com os órgãos.
“Se menos álcool entra no corpo, os riscos de se desidratar são menores, mas a pílula em si não vai impedir, por exemplo, que o álcool atinja o estômago, então essa dor não daria para prevenir”, explica Rosana Camarini, especialista em neurobiologia do transtorno por uso de substâncias.
Ela lembra que a versão inglesa é constituída apenas de probióticos. “É um suplemento baseado em algumas bactérias, produzido da fermentação do arroz que descobriram que degradariam o álcool mais rapidamente em água e dióxido de carbono, diminuindo então o sintoma de ressaca do dia seguinte”, afirma a professora associada do Departamento de Farmacologia da USP (Universidade de São Paulo).
Em geral, segundo a professora, os probióticos dessas pílulas são razoavelmente seguros para a maioria das pessoas. “Entretanto, não sabemos se ela pode desbalancear as bactérias que estão já presentes no corpo, esse balanço natural das bactérias saudáveis do intestino, podendo causar alguma infecção ou até distúrbio gastrointestinal”, pondera a especialista.
Sobre a eficácia —tanto da versão inglesa como da brasileira—, ela diz que as evidências são baseadas em um único estudo e que o inglês teve uma amostra de apenas 24 homens jovens brancos, enquanto o outro não foi divulgado.
“Isso levanta um monte de questões. Funciona para qualquer tipo de indivíduo? Será só para jovens? Existe diferença no efeito entre homens e mulheres? O que acontece quando você ingere álcool com outros tipos de alimento junto? Outros medicamentos podem mudar o efeito? Tem bastante coisa ainda para ser pesquisada”, ressalta.
Como o consumo excessivo de álcool (conhecido como “binge”, em inglês) em um tempo curto pode aumentar o risco de problemas sérios de saúde e causar episódios de violência ou acidentes, a docente faz um alerta: “Essa propaganda de que você não vai ter ressaca no dia seguinte pode levar as pessoas a beberem mais”.
É o que também argumenta o farmacêutico Gustavo Alves Santos, professor da Faculdade de Medicina São Leopoldo Mandic Araras.
“Embora ele possa trazer estados de euforia, o álcool na verdade é um depressor do sistema nervoso central e, para produzir esses efeitos, ele passa por uma série de processos bioquímicos. A fisiologia vai perceber que aquilo que ele bebe normalmente não está trazendo os mesmos efeitos que traria, esse é o sistema de recompensa. Pode fazer com que o indivíduo queira beber mais para atingir essa resposta que ele não teve”, afirma, ressaltando que a bebida é um tipo de droga e que tem ação no sistema nervoso central.
“Uma pessoa que quer diminuir a ressaca, dependendo do que ela espera do efeito do álcool, que normalmente é o estado de euforia, de relaxamento, vai acabar recorrendo a quantidades maiores para suprir esse eventual efeito ‘menor'”, avalia o professor.
Santos afirma que ideia de que produtos naturais “não fazem mal” é um grande erro e cita o ginko biloba, usado para memória e que pode provocar hemorragia em quem toma anticoagulantes, por exemplo.
“Substâncias dadas como fitoterápicas, medicamentos naturais, são remédios que têm efeitos terapêuticos, muitas vezes até iguais ou superiores a medicamentos sintéticos”, diz o farmacêutico.
Já para Vinícius Detoni, farmacêutico clínico e doutorando pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP, se comprovada a efetividade em estudos, a pílula pode ser uma aliada para aqueles que fazem um consumo moderado de bebidas alcoólicas.
“Muitas vezes, as pessoas em situações comemorativas acabam extrapolando o consumo de álcool, prejudicando o rendimento no trabalho, nos estudos. Portanto, o uso esporádico pode ser uma opção viável. Porém, cabe destacar que o uso abusivo e crônico de álcool causa danos severos a diversos sistemas do organismo e que a pílula não conseguiria evitar”, afirma o pesquisador.
Créditos: Folha.