As mesmas multidões que há três anos foram às ruas pedindo reforma total dos modelos econômicos e políticos do Chile vão às urnas neste domingo (4) para pôr à prova o efeito das manifestações.
Os ânimos em torno do plebiscito que vai decidir se a Constituição proposta para substituir a instituída na ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006) são distintos daqueles dos atos que ferveram as ruas chilenas em 2019. Agora, os números das principais pesquisas mostram um país mais preocupado com a situação econômica e a inflação de 13,1% ao ano, com o aumento de 30% das denúncias de episódios de violência e com os impactos sociais da pandemia de coronavírus.
Esse é o pano de fundo por trás da vantagem numérica dos que pretendem votar contra a nova Carta (46%) sobre os que aprovam o novo texto (37%) —17% dos chilenos ainda estão indecisos, segundo os últimos levantamentos.
A proposta foi redigida por uma Assembleia Constituinte eleita em 2021 como resultado de um acordo entre as diversas forças políticas para acalmar as ruas. O pedido por uma nova Carta que enterre o legado de Pinochet vem de uma pressão popular por mudanças principalmente no sistema de Previdência, mas também no que diz respeito ao acesso a direitos como educação e saúde públicas.
O texto foi redigido por 155 legisladores, a maioria independentes, de uma assembleia com paridade de gênero e participação de 17 representantes de nações indígenas. A população descendente de povos originários do Chile é de 12,8%, mas a atual Constituição, promulgada durante a ditadura militar (1973-1990), não reconhece a existência dessa fatia dos chilenos.
No domingo, o voto será obrigatório no “plebiscito de saída”, como ficou conhecida a votação. Os resultados devem ser divulgados poucas horas após o fechamento das urnas.
Caso o “não” vença, como indicam as pesquisas oficiais, o presidente Gabriel Boric e o Congresso já firmaram um plano B para prosseguir com as negociações de modo a estabelecer parâmetros para redigir uma nova Carta e torná-la mais viável em termos de aprovação. O líder esquerdista defende a aprovação da proposta atual e fez dela um dos pilares de sua campanha eleitoral no ano passado.
“Eu quero viver num país diferente, em que meu avô tenha uma aposentadoria digna e eu não tenha de sair endividado da faculdade”, disse Heraldo Hales, 21, à Folha, durante o ato em favor do Aprovo que reuniu milhares de pessoas no centro de Santiago na noite de quinta-feira (1º).
Na concentração dos que apoiam o Rejeito, Taís Ercila, 35, afirmou que os constituintes não ouviram os cidadãos. “Fizeram uma Carta juntando panfletarismo e ativismo. Queremos que se comece tudo de novo, com o cidadão sendo escutado em primeiro lugar.”
Entre os pontos considerados controversos da nova Constituição estão a afirmação de que o Chile passaria a ser um Estado plurinacional, reconhecendo autonomia de indígenas sobre seu território, a aprovação de uma lei de aborto que leva em conta apenas a vontade da mulher e a proteção ampliada do meio ambiente, que desagrada interesses do setor minerador.
O texto tem 388 artigos e 11 capítulos e, apesar do tamanho, virou um hit dos quiosques e bancas de jornais pelo país, nos quais é disputado como se fosse um best-seller.
Entre as cláusulas há ainda as que definem o Chile como um “Estado de direito, com democracia representativa reforçada com modalidades de democracia direta”, o que significa uma possibilidade de que existam mais consultas populares com relação a temas sensíveis.
A Carta também institui o que chama de “Estado ecológico”, assumindo um compromisso com a contenção das mudanças climáticas e do avanço de empreendimentos de agronegócio e mineração em áreas de mananciais de água, glaciares ou habitadas por povos indígenas.
Também há mudanças políticas radicais. Se aprovado o novo texto, o Senado será abolido e substituído por uma Câmara com maior representatividade regional. Esse assunto, também polarizador, é uma reclamação contra a centralização da administração do país em Santiago e contra o fato de o Chile não ser uma federação, o que enfraquece a participação das regiões no governo nacional.
“A experiência chilena de reescrever a Constituição pode ser uma lição global de democracia direta, para o bem e para o mal”, afirma o analista Anders Beal, do Wilson Center (EUA).
Para ele, mesmo com a derrota do “sim”, o processo todo traz dois lados importantes. Ao mesmo tempo que mostra o poder da mobilização popular para interferir na política de forma que vai além da atuação dos partidos tradicionais, pode frustrar a expectativa dos chilenos. “Essa experiência é um processo longo, e a crise econômica pode minar a paciência das pessoas.”
Não é a primeira vez que se tenta enterrar a Constituição associada a Pinochet. Em 2005, durante a gestão do socialista Ricardo Lagos, foram modificados ou eliminados artigos mais autoritários da Carta, especialmente os que estavam relacionados à ingerência das Forças Armadas na política.
Já no governo de Michelle Bachelet, houve mais de uma tentativa de aprovar a formação de uma Assembleia Constituinte, travada por representantes da direita no Congresso. Ainda assim, a ex-presidente, que agora se empenha na campanha pelo “sim”, conseguiu fazer reformas criando a gratuidade parcial para a educação universitária e benefícios sociais oferecidos pelo Estado.
Nas últimas semanas, houve manifestações de defensores de ambos os lados em vários pontos do país. Alguns incidentes ocorreram. Em Valparaíso, num palco armado pela campanha do Aprovo, uma performance de um grupo pró-diversidade chamado Los Indetectables casou repúdio e polêmica. Nela, um manifestante retirava do ânus uma bandeira do Chile. Já nos arredores de Santiago, um grupo de apoiadores do “não”, que andavam a cavalo, atropelaram ciclistas que defendiam o “sim”
Créditos: Folha de S. Paulo.