Guardado em uma pequena caixinha de couro, deteriorado e ressecado pelo tempo, um pênis humano é guardado a sete chaves pela filha de um urologista americano. Medindo 3,8 centímetros, o fragmento humano é considerado uma bizarra relíquia. Seria o órgão sexual do estadista e líder militar francês Napoleão Bonaparte (1769–1821), uma das personalidades políticas mais conhecidas da história da humanidade.
Há mais mistério do que confirmações a respeito da curiosa peça. Autor de um artigo a respeito do tema, o historiador Vítor Soares, que mantém o podcast História em Meia Hora, afirma à BBC News Brasil que, em se tratando disso, “as coisas não são tão consensuais assim”.
“Embora por muito tempo as pessoas tivessem a certeza de que o pênis era dele, há a possibilidade de que não seja. Nunca foi comprovado que realmente seja”, ressalta ele.
Pesquisador integrante de grupo da Universidade Estadual Paulista e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato tem opinião semelhante. “É difícil comprovar que, de fato, esse pênis pertença a Napoleão Bonaparte, porque não há nenhum estudo relacionando o material genético desse pênis com o dos restos mortais de Napoleão, sepultado na França”, argumenta ele, em conversa com a reportagem. “Hoje em dia, com as tecnologias disponíveis, seria possível, valeria a pena.”
“O que há é uma trajetória [do órgão sexual atribuído ao estadista]. É factível que seja dele porque já na época havia uma importância histórica, um significado acerca de Napoleão”, explica Missiato.
Essa trajetória foi amplamente recuperada pelo historiador e jornalista Tony Perrottet em seu livro Napoleon’s Privates: 2500 Years of History Unzipped. Partindo do que é notoriamente comprovado: que quando morreu, na Ilha de Santa Helena, em 5 de maio de 1821, ele foi submetido a uma autópsia.
Se a subtração do membro realmente ocorreu, provavelmente foi à frente de testemunhas. Relatos indicam que havia 29 pessoas próximas ao corpo de Bonaparte da morte à preparação para o sepultamento, entre elas oito médicos, duas criadas, um padre e um serviçal.
A amputação peniana teria sido feita pelo médico François Carlo Antommarchi (1780–1838). Alguns acreditam que tenha sido por vingança porque ele teria sido encarregado meio a contragosto de passar uma temporada na ilha para cuidar da saúde já debilitada — ele padecia de úlcera no estômago e, provavelmente, tenha morrido de câncer — de Bonaparte.
Para piorar, conta-se que o médico costumava ser destratado pelo seu paciente ilustre, que não raras vezes o recebia com cusparadas e xingamentos.
O caminho de um órgão sexual
Segundo pesquisas de Perrottet, Antommarchi teria vendido a relíquia íntima ao padre italiano Ange Paulo Vignali, encarregado de dar a extrema-unção em Bonaparte. Este a levou para a Córsega — terra natal do falecido e também dele, o sacerdote.
Soares diz que as discrepâncias já começam aí, porque outras teorias acusam o próprio padre de ter subtraído o nobre membro, outras trabalham com a possibilidade de que tudo havia sido combinado entre os médicos presentes — já que a retirada e preservação de partes do corpo de personalidades não é algo incomum na história.
Em 1916, o antiquário britânico Maggs Bros comprou o item, que estava guardado pela família do padre da Córsega. Nas cinco décadas seguintes, o órgão sexual atribuído ao ex-imperador francês se tornou objeto de curiosidade pelo mundo.
O pênis mudaria de mãos alguns anos mais tarde. Considerado “o terror da sala de leilões”, por sua participação sempre financeiramente agressiva nos leilões promovidos pela Sotheby’s, em Londres, o colecionador e livreiro norte-americano Abraham Simon Wolf Rosenbach (1876–1952) arrematou um lote de preciosidades em 1924. O conjunto incluía a preciosidade napoleônica.
É a partir daí, quando a peça é levada aos Estados Unidos, que começa a existir uma documentação — precária, evidentemente — para tentar comprovar sua autenticidade. A própria empresa de Rosenbach publicou um catálogo nos anos 1920 enfatizando que “a notável relíquia foi recentemente confirmada pela publicação na Revue des Deux Mondes de trecho de memórias póstumas de St. Denis, na qual ele diz expressamente que ele e Vignali levaram pequenos pedaços do corpo de Napoleão durante o trabalho de autópsia”.
Curiosamente, o catálogo usa um eufemismo para nomear o órgão. Diz o texto que se trata de “um tendão mumificado retirado do corpo de Napoleão durante a autópsia”. St. Denis, citado no texto, era Louis Etienne Saint-Denis (1788–1856), criado pessoal do ex-imperador.
Foi Rosenbach quem acondicionou o pênis da forma como ele se encontra hoje, em uma caixinha de couro de Marrocos azul, aveludada. De acordo com texto oficial da hoje organização Rosenbach, que mantém um museu e uma biblioteca decorrentes do acervo de seu fundador, o colecionador “deleitava-se” quando falava “sobre as notórias relíquias de Napoleão”.
Em 1927, a peça foi exibida publicamente no Museu de Arte Francesa de Nova York. Conforme relatos da imprensa da época, a exposição provocou “suspiros de sentimentais” e “risadinhas nas mulheres”. O pênis de Napoleão chegou a ser comparado a “uma enguia enrugada”.
Rosenbach vendeu a relíquia a um de seus melhores clientes, o bibliófilo Donald Frizell Hyde (1909–1966), que foi presidente da Sociedade Bibliográfica da América. Quando ele morreu, sua viúva retornou a posse do objeto aos sucessores de Rosenbach.
Pouco tempo depois, o pênis famoso foi comprado pelo colecionador Bruce Gilmeson. Ele tentou leiloar o membro na casa de leilões Christie’s, em Londres, em 1972. Foi um fracasso. Sem receber o lance mínimo, o órgão voltou para a coleção de Gilmeson.
O urologista que guardou o membro
Cinco anos mais tarde, contudo, o urologista americano John Kingsley Lattimer (1914–2007), notório professor da Universidade de Colúmbia, afeito a colecionar objetos históricos — contratado pela família para analisar as evidências do assassinato de John Fitzgerald Kennedy (1917–1963), ele guardava um pedaço do estofado da limusine presidencial onde estava o então presidente quando foi alvejado.
A partir de então, o pênis de Napoleão voltou a ganhar privacidade. Lattimer não exibia o membro famoso, reservando-o apenas a círculos mais íntimos — calcula-se que menos de 10 pessoas o tenham visto desde então.
Foi o urologista que propagou a versão de que a extirpação do órgão sexual tenha ocorrido por vingança do médico, como forma de retaliação por conta da maneira pouco educada com que o ex-estadista francês o tratava.
Quando Lattimer morreu, a posse do órgão sexual ficou com sua filha. Que segue à risca o solicitado pelo pai: não mostrar o pênis a nenhum curioso.
Outras partes
Soares lembra que o órgão sexual não foi o único pedaço do corpo de Napoleão Bonaparte que teria sido retirado no momento da autópsia. Nas memórias do criado Denis, por exemplo, ele afirma que teria se aproveitado de um momento de distração dos médicos para subtrair, ele próprio, alguns pedaços da costela do defunto.
Conta-se que o próprio ex-imperador havia manifestado o desejo de que, com sua morte, o seu coração fosse retirado e enviado como presente para sua esposa — mas esta vontade não foi realizada.
A ideia de preservar órgãos e tecidos de personalidades mortas não é incomum ao longo da história. Por aqui, é famoso o caso do coração de Dom Pedro I (1798–1834), trazido ao país nesta semana para tomar parte das celebrações do bicentenário da Independência — proclamada por ele, que se tornaria o primeiro imperador do Brasil.
No Pátio do Colégio, centro histórico de São Paulo, há um fêmur humano atribuído ao religioso José de Anchieta (1534–1597), padre jesuíta que foi um dos fundadores da cidade e hoje é considerado santo pela Igreja Católica. Na basílica dedicada a Santo Antônio (1195–1231) em Pádua, na Itália, é possível ver a língua que teria sido do frade com fama de milagreiro.
“Essa prática está ligada à tradição cristã”, aponta Missiato. “A ideia do corpo enquanto sacrifício vem de antes do cristianismo, mas depois acaba ganhando proporção maior.” Conforme suas explicações, esse imaginário originalmente religioso ganha contornos patrióticos quando os estados nacionais começam a ser criados.
“Há uma conexão clara dos nacionalismos, que se apropriam dos valores cristãos e produzem novos símbolos, novos heróis e novas histórias, com esse tipo de adoração”, contextualiza ele.
“Assim, grandes líderes nacionais são construídos como heróis. Nesse sentido, a ideia de ter acesso a esses materiais, essas relíquias, é uma forma de se apropriar do poder dessas figuras”, acrescenta. “Isso move o imaginário nacional. Nos projetos de nação, é comum essa apropriação de uma simbologia originalmente cristã. E esses heróis do passado passam a ser visto como também do presente, como eternos.”