Um estudo inédito liderado pelo médico brasileiro Márcio Nakanishi, um dos principais otorrinolaringologistas do país, pode revolucionar a forma de avaliar a capacidade olfativa de uma pessoa, ajudar setores da economia que precisam de profissionais com bom olfato (leia mais abaixo) e medir o impacto da pandemia do novo coronavírus na população –um dos sintomas mais relatados de quem teve covid é não conseguir mais discernir cheiros.
A pesquisa conduzida por Nakanishi foi desenvolvida pela Universidade de Brasília e revisada por pares da revista Ifar (International Forum of Allergy and Rhinology), número 1 do mundo na área de rinologia em 2020. O diferencial do estudo é um aparelho portátil desenvolvido pela startup Noar e capaz de medir se o olfato do paciente está normal, com algum grau de perda ou até perda total.
Chamado comercialmente de MultiScent 20 (assista ao vídeo ao final do texto), o dispositivo tem a aparência de um tablet e vem em duas versões: com ou sem tela. A versão sem tela funciona conectada a um smartphone. Os 2 têm espaço interno para 20 cápsulas, cada cápsula com um cheiro diferente e capaz de emitir até 100 disparos por meio de um pequeno orifício no aparelho.
Para medir sua capacidade olfativa, o paciente passa por 40 perguntas de múltipla escolha. Funciona da seguinte forma: depois de sentir o cheiro emitido pelo dispositivo, ele responde no próprio aparelho ou no smartphone de qual aroma se trata. O processo dura cerca de 12 minutos.
PERDA DE OLFATO PELA COVID
Como Nakanishi explica, a estrutura externa do SARS-CoV-2, o novo coronavírus, é formada pela proteína “spike”, similar a um conjunto de espinhos. Essa proteína, “como o mecanismo de uma chave”, se conecta com receptores das células do epitélio respiratório, região onde se identificam os odores nas terminações neurais, abrindo caminho para a replicação da carga viral.
“Ele machuca, danifica essa célula. E, a partir desse momento, o nervo que está permeado por essas células de sustentação –como o nome já está dizendo, sustenta o nervo do olfato– para de funcionar”, afirma.
Como essas células se regeneram em torno de 30 dias, a depender do grau de agressão do vírus, a capacidade olfativa tende a se recuperar no curto a médio prazo. “Esse é o mecanismo que os cientistas encontraram para descrever como que existe essa perda do olfato”, diz Nakanishi.
TRATAMENTO
A recuperação do olfato é dividida em 3 etapas clínicas:
- 1) depois de identificado o problema no sentido, o 1º passo é combater o processo inflamatório causado pela agressão, reduzindo as lesões na área infectada;
- 2) na sequência, começa a etapa de regeneração do conjunto de células de sustentação com a prescrição de medicamentos para estimular o processo e recuperar a estrutura ligada ao “teto” do nariz;
- 3) por último, o paciente é instruído a exercitar a “neuroplasticidade” –ou seja, a fazer um treinamento olfatório para readequar o sistema nervoso a associar um elemento a seu odor característico.
“Você vai oferecer substâncias odoríferas, vai sentir o cheiro tentando lembrar daquela substância –por exemplo, limão, essência de rosa ou essência de cravo. Às vezes a pessoa não está nem sentindo cheiros e vai olhar para a foto do limão, lembrar do limão e fazer esse estímulo olfativo”, afirma Nakanishi.
COMO MEDIR A CAPACIDADE DO OLFATO
Márcio Nakanishi explica que a evolução dos testes nos Estados Unidos e na Alemanha da década de 1960 até a década de 1990 teve o desafio de armazenar o estímulo em diferentes repositórios –como potes, cartelas de raspagem e canetas.
“O conceito da avaliação olfativa é prender o cheiro, soltá-lo e registrar o resultado do indivíduo. Você precisa de pessoas treinadas que sejam capazes de mensurar”, detalha.
A inovação trazida pelo dispositivo está na tecnologia de emissão do odor em cheiro seco, sem a diluição em álcool ou outros solventes –que comprometem a pureza do estímulo. Os odores são armazenados em cápsulas dentro do aparelho. Cada uma pode emitir até 100 disparos.
“Até então, não tinha se criado nada além desses métodos de aprisionamento, liberação e registro. Então, todos os testes basicamente são variações desses padrões de aprisionar em potes, em papel através de microesferas, em canetas ou aprisionar de outras maneiras.”
TIPOS DE TESTES
Os testes são divididos em 3 tipos, com um 4º teste inédito em fase de desenvolvimento por Nakanishi junto à equipe da Noar.
Leia abaixo os tipos de testes:
- identificação – nesse modelo, o paciente deve identificar o odor emitido a partir de um questionário de múltipla escolha. É necessária uma “pista semântica” entre as alternativas, também chamada de “distrator”. Exemplo: no aroma de laranja, o questionário apresentará as opções maçã, canela, laranja (a correta) e baunilha;
- discriminação – aqui, avalia-se a capacidade de diferenciar um odor de outro par de cheiros idênticos. Exemplo: um frasco com menta (o diferente) e outros 2 com citronela;
- limiar – nesse teste, o paciente deve identificar a presença de um aroma pela intensidade da diluição em água em diferentes concentrações. Exemplo: frascos com odor de rosas diluídos em 10, 30 e 50 gotas. Quanto menor a concentração necessária para identificar o cheiro, melhor o limiar;
- hedonismo – no protótipo, os gostos pessoais de cada indivíduo são avaliados, traçando um perfil de rejeição, prazer ou indiferença a determinados cheiros.
Sobre esse último, Nakanishi afirma que os testes preliminares apresentaram situações curiosas entre as preferências de cada paciente. Segundo ele, em uma voluntária, o cheiro de talco de bebê ativou uma memória afetiva com seu filho, enquanto o aroma de alho trouxe desgosto. Na voluntária seguinte, as preferências se inverteram, com o cheiro de talco sendo indiferente e o de alho, remetendo ao prazer da alimentação.
“Esse hedonismo é muito interessante como um domínio para você predizer se o tratamento é correto para diferentes pessoas. Não faz muito sentido para aquela que não gosta de alho dar um cheiro de treinamento olfatório com alho. Eu vou priorizar o cheiro do talco de bebê, por exemplo. Então até isso faz uma personalização na área do tratamento”, explica o médico.
FATOR SEGURANÇA
A importância do olfato pleno vai além da preocupação com as sequelas deixadas pela covid.
O sentido também é necessário para identificar condições no ambiente que passam despercebidas pela visão ou audição, como o vazamento de gás de cozinha ou de monóxido de carbono.
Importantes setores da economia, como os ligados às indústrias química e petroquímica (serviços em refinarias, plataformas de exportação de petróleo e postos de gasolina), e da gastronomia e segurança pública (bombeiros) exigem uma força de trabalho capacitada a notar variações identificadas pelos cheiros.
“Pessoas sem olfato estão mais predispostas a acidentes, sejam domésticos, pessoais ou de trabalho. Por exemplo, em um prédio com um incêndio, pessoas com problemas olfativos serão as últimas a perceber”, diz Nakanishi.
BANCO DE DADOS
Outra novidade proporcionada pelo dispositivo digital é a centralização dos resultados obtidos em uma base de dados de plataforma aberta, que pode servir como ferramenta de pesquisa pela comunidade científica global.
A diretora-executiva da Noar, Cláudia Galvão, afirma que essas informações obtidas serão armazenadas em formato criptografado, conforme os termos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018). O aparelho já tem o selo de aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) para operar no Brasil.
O próximo passo do projeto é trabalhar o dispositivo junto a um grupo de especialistas da área nos Estados Unidos, Europa, América Latina e outras regiões, obtendo uma validação do cardápio de testes adaptados a cada país. O desenho dos termos de uso da plataforma, em fase final de desenvolvimento, será apresentado nos próximos meses a investidores e parceiros.
Para Nakanishi, o cruzamento dos dados pode revolucionar a análise segmentada em estratificações por região, renda e demais perfis demográficos.
Ele cita, como exemplo, a possibilidade de cruzar dados sobre a piora na qualidade do olfato com o aumento do uso de um remédio para diabetes, identificando um efeito colateral despercebido pela indústria farmacêutica.
“Esse é o tempo de levar essa tecnologia justamente com esse enfoque na educação, o que podemos contribuir para transformar a avaliação olfativa no mundo”, afirma o especialista.
QUANDO ESTARÁ DISPONÍVEL
O dispositivo será produzido na fábrica da Wheaton, empresa de embalagens de vidro e investidora-anjo da Noar, em São Bernardo do Campo (SP), e vendido para redes de hospitais e de farmácias e para clínicas nos modelos com tela e sem tela.
O preço de venda do modelo com tela é estimado em US$ 690 (cerca de R$ 3.600 na cotação atual), enquanto o sem tela deve custar US$ 390 (R$ 2.000).
O valor cobrado pelos testes será definido por hospitais e clínicas, mas Galvão diz acreditar que o preço tende a popularizar a testagem: “Qualquer SUS, qualquer hospital consegue ter o dispositivo, porque ele é muito mais barato se comparado com o que tem hoje em dia no mercado”.
A previsão é iniciar a comercialização do dispositivo no 2º semestre de 2022. “A gente está trazendo a medicina robotizada para o olfato, criando o 1º banco de dados olfativo do mundo na área médica. Temos muito orgulho de ser essa startup aqui no Brasil”, afirma Cláudia Galvão.
Créditos: Poder 360.